inferências
BARREIRO - Por dentro dos Dias
O cachimbo que se faz ternura e saudade.

Esse futuro, em tempos idos, foi feito de cânticos de rouxinóis de asas cortadas, de palavras de gritos de dor forjadas por trás daquela janela, grades da solidão. É esse tempo que queremos viver, recordar, para que a memória não caia no esquecimento, por isso, queremos festejar os 50 anos do 25 Abril. Um tempo que está inscrito na memória de um tempo que se fez futuro.
Ah é verdade, como o Mestre gostava de colocar o cravo de Abril a beijar o seu coração.
Era meio dia e dezasseis minutos, deste dia catorze de novembro do ano Dois Mil e Vinte e três. Recebi uma mensagem, que gritava, por dentro da dor, palavras escritas com uma ternura que sentia, inscrita, no silêncio dos sons humedecidos: “Olá Sousa. Espero-te bem. A avó Maria Manuela faleceu aos 87 anos”. Comunicava meu amigo Augusto António Cabrita, neto da minha querida Manuela Cabrita.
Fiquei triste. Não triste de uma tristeza que desliza nos olhos. Fiquei triste daquela tristeza, única, que não tem dor, ou lágrimas, que se escrevam em palavras, nem tem palavras para soletrar o que nasce a florir dentro do coração. Um silêncio que não tem nada, não tem mais nada, senão aquela imensa e súbita saudade que emerge do tempo, um misto de recordações e sorrisos que invadem os olhos, sons que vagueiam por dentro das memórias. Uma ruptura com instantes guardados no confim de nós mesmos, coisas que só sente, quem sente o tempo dentro de si, partilhado, com os outros, porque a vida só faz sentido com outros a nosso lado.
Esses tempos que sentimos partir para um infinito a voar numa ausência que rasga os ossos, invade os olhos, explode no corpo e fica semeada no coração, esse lugar onde o tempo é eternidade. O coração é um relógio que pulsa, ao ritmo do tempo e da vida.
Recordo a minha querida Manuela, nos dias que decidi publicar o livro – “Augusto Cabrita- sobre o ritmo e sobre a vida”, como ela, com um sorriso e uma sensibilidade cristalina, abriu a porta de sua casa, de par em par, as gavetas de todas as memórias, para eu sentir, com os meus olhos o tesouro do seu companheiro de todas as horas e todas as lutas, o Mestre Augusto Cabrita.
Recordo aqueles dias que seus olhos eram papoilas, abertas ao sol, onde estava escrito um poema com a palavra Luisa.
Recordo a sua energia e verticalidade, estórias que contou, na sala a olhar o Tejo, naquela mesa redonda, onde tantas vezes conversei com o Mestre e onde o meu livro começou a nascer numa prancha onde o Mestre inscreveu o seu formato.
Recordo as muitas vezes, quando nos encontramos na rua, no parque, em eventos, momentos em que seu olhar sorria, cúmplice, com emoções escritas num sorriso a lembrar Monalisa. Discreto.
Recordo o sonho que tinha, entre outros sonhos, sonhados, de ver nascer o livro com as fotografias da India, onde toda a beleza estética da obra do Mestre emerge com espectacularidade, energia, humanismo e harmonia. Estão, agora, patentes na exposição do centenário no AMAC.
Recordo o afecto com falava do Mestre, o seu companheiro, ela que era o outro lado da sombra do Mestre, o pilar do seu silêncio. Comentava o amor e paixão que tinha pelas suas artes – fotografia, cinema, música. Na realidade a arte de Augusto Cabrita é poema que está semeado nos seus neurónios, vagueia nos seus nervos, floresce no seu sangue e emerge para vida pela força e sabedoria do seu olhar – luz, contraluz, sombra, mística, quimera e sonho.
Ele trabalhava por amor, só por amor, com indiferença ao sentido material da vida, comentava Maria Manuela, em palavras – “a sua vida foi construída pelo que deu aos outros”.
Tantas recordações de instantes partilhados com Manuela Cabrita. Uma mulher de grande nobreza, verticalidade. Uma mulher pura, simples, cuja voz mantinha uma sonoridade, onde se escutava um timbre oriundo do Algarve. A nossa província comum, eu do sotavento, ela do barlavento. Amava o Barreiro. Tinha o Barreiro no coração.
Um dia, num fim de tarde, enquanto conversávamos e olhávamos o Tejo, daquela janela onde está inscrito o mais belo prémio do começo de um dia, ela, com aquele sorriso infantil e cativante, que florescia do seu rosto branco de luar, em lábios que sorriam na textura das palavras, voltou-se para mim e disse: “Sousa Pereira, quero ter uma recordação sua”.
Olhei surpreendido e interroguei: “Que recordação lhe posso dar?”.
“O seu cachimbo”, disse.
E o meu cachimbo, que estava sobre a mesa, passou para as mãos da minha amiga Manuela Cabrita, que pegou nele e acariciou-o com um sorriso, feliz. Eu, também, sorri feliz. E pensei que se existe felicidade são instantes como estes que fazem na memória nascer a palavra saudade.
Recordei hoje este instante. O cachimbo que se fez recordação e ternura.
Ao fim da tarde, fui à Igreja de Nª Srª do Rosário, aquele templo Camarro, de orações e despedidas, Parei em silêncio e rezei um adeus daqueles que sentimos que é um até sempre, que se faz melodia que se dilui, dilui, dilui…
Imaginei-a, sorridente ao lado do Mestre, divertidos, com o meu cachimbo a lançar nuvens brancas no céu, semeando flocos de algodão, ali, por cima das ondas do Tejo, onde, como diz o poeta, está tudo o que lá não está, e, as gaivotas descansam as asas na eternidade.
António Sousa Pereira
14.11.2023 - 23:28
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