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Por dentro dos dias
Dos Resistentes Antifascistas às memórias do futuro!
Barreiro

Por dentro dos dias  <br />
Dos Resistentes Antifascistas às memórias do futuro!<br />
Barreiro<br />
Desde há muitos anos existe na toponímia barreirense uma Rua que presta uma justa homenagem aos Resistentes Antifascistas, que foram muitos, e, na verdade, nem todos foram presos pela PIDE. Há muitos esquecidos. Foram Comunistas. Católicos. Socialistas. Republicanos. Sem partidos. Sem religião. Homens e Mulheres de corpo inteiro. Este imenso património imaterial, muito dele guardado na Torre do Tombo, devia merecer investigação. Preservação. Tanta coisa já se perdeu.

Hoje pela manhã passei naquela artéria, e, enquanto descia a rua, no meu pensamento ocorriam-me muitas memórias. Afinal, todas as ruas têm memórias inscritas. Tanta coisa que me ocorreu ao pensamento. São as memórias dos lugares.

Ali, nos TCB, vivi a trabalhar uns dias, depois de cinco anos de “prateleira”.

Um dia, o Carlos Maurício, lançou-me o repto de ir para a Protecção Civil, e, por ali estive uns meses a desembrulhar documentos encaixotados. O arquivo do extinto Serviço Municipal de Protecção Civil, criado nos tempos do João Pintassilgo, numa epopeia histórica da Isabel Tavares, que contou a colaboração do Comandante Encarnação Coelho, um tempo em que se dinamizou o primeiro Plano de Protecção Civil da Quimiparque. Este que foi um dos primeiros planos de protecção civil do país.

Enfim coisas, que as ruas trazem à memória.



Uma rua com mutas memórias. Recordei o dia que visitei o espaço da Fábrica de Cortiça, há anos abandonada.

Uma fábrica onde trabalhou o Ti’ Jerónimo Alves, Sócio Honorário da SFAL, que não foi preso pela PIDE, mas que foi chamado à António Maria Cardoso, ele, e o Ti` Mário Saraiva, também Sócio Honorário da SFAL, porque a SFAL promoveu um Colóquio com Urbano Tavares Rodrigues. Não foram presos.

A fábrica de Cortiça que passou para propriedade da Câmara Municipal do Barreiro, na gestão de Helder Madeira, para ali localizar as novas Oficinas dos TCB, processo que, depois, foi concretizado na gestão de Pedro Canário.

Naquele tempo, quando se contavam os tostões para manter vivos os transportes públicos, sem apoios governamentais, sem a contrapartida devida dos passes sociais. Não havia PRR. Nem se cumpria a Lei de Finanças Locais.

Este serviço, era, e continua a ser um serviço essencial na comunidade. Os TCB que receberam o maior investimento público municipal, estratégico, realizado na última década, desenvolvido e concretizado na gestão da CDU, com o apoio do governo PS, e, concluído na gestão autárquica PS. A remodelação total da frota.

É assim a vida autárquica uns resolvem uns problemas, outros resolvem outros. Há espaços abandonados que deixam de estar abandonados. Nada de novo. Mas há aqueles que, enfim, acham que o mundo começa sempre, sempre, no agora. Parece uma cassete. Não há nada a fazer. Há quem chame a isto populismo. Mas, nos tempos de hoje, pelos vistos, é o que está a dar votos.

Pois, até há espaços que estavam abandonados e, hoje, ou, já há muito tempo, podiam ser um amplo espaço público aberto, um imenso espaço verde, junto ao Tejo e à natureza. E lá continua há 7 anos ao abandono – a Quinta de Braamcamp.



Mas andava por ali, naquela rua, dos Resistentes Antifascistas e recordei, uma conversa que tive com o Ti Flávio Alves, um homem preso pela PIDE, devido à grande jornada da bandeira vermelha. Ele comentou as reuniões que se faziam nos terrenos, junto à Estação do Lavradio, ao cimo da rua, para preparar greves ou jornadas de luta. Uma delas o 18 de Janeiro de 1934.



Pensava em tudo isto e na minha memória sentia o pulsar de uma memória, aquela de uma comunidade que lutou, sofreu, sentiu, na pele, no corpo e na consciência a dor do amor á liberdade, perante um regime opressor.

Sim, essa é uma das marcas culturais do concelho do Barreiro, uma realidade que está inscrita na memória desta comunidade, essa realidade de resistência e luta, de amor à democracia, que se vivia na vida associativa, esse amor à Liberdade que nascia nos movimentos das crianças e jovens que davam alegria aos dias, nessa epopeia que escrita a palavras de ouro que se dizia : JJB – “Jogos do povo e para o povo”, frase que a censura cortou num artigo que escrevi para o Noticias da Amadora.

O concelho do Barreiro, apesar de alguns quererem nos últimos tempos ignorar, foi uma terra operária, de cultura solidária, de relações de vizinhança e proximidade, de cultura de fábrica. Homens e mulheres com um legado histórico de luta e combate, pela Liberdade e Democracia.

Uma terra onde, no dia 4 de Outubro de 1910, antes de ser assinalada em Lisboa, nos Paços do Concelho do Barreiro, era assumida a implantação da República, sendo a Comissão Administrativa, que tomou o poder, composta por homens amantes da Democracia, na sua maioria, homens justos e livres que integravam a loja da Maçonaria do Barreiro.

Uma terra que após o 25 de Abril, em que todos decidiram destituir a Câmara Municipal do Barreiro, foi nomeada uma Comissão Administrativa, composta por 19 pessoas, de diferentes orientações políticas, de diversas áreas de pensamento, que abriram caminho ao Poder Local. Uma Comissão presidida por Helder Fráguas. Um vulto cultural e civico. Uma Comissão que era bem um exemplo da pluralidade e da democraticidade conquistada com Abril. Uma memória da democracia por escrever, como exemplo de democraticidade e respeito pelas diferenças.



Uma terra que ao longo de gerações foi humilhada com cavalos nas ruas, o medo a aterrorizar, as escutas nos cafés e no seio das famílias. Uma terra onde a resistência doía e o silêncio era a forma de evitar os que gostavam de cultivar o pensamento único.

Uma terra que, um dia, um amigo falava-me que exista o “reviralho”, que também era resistente, pela calada da noite, alguns barreirenses que, durante o dia desempenhavam funções na vida social e, depois, de noite eram resistentes ou resilientes, muitos daqueles que diziam com orgulho: “Sou do Barreiro”, porque ser do Barreiro era ser de uma terra de referência, de luta, de trabalho e de resistência.

Recordo um médico que de dia conviva com o regime, era peça do sistema, e, à noite, pelo silêncio da noite, era conduzido, até às casas esconderijo, para prestar assistência médica aos comunistas na clandestinidade.

Por isso, ao passear pela Rua dos Resistentes Antifascistas, recordei que há muitos mais, mesmo muito mais, resistentes no concelho do Barreiro, que aqueles que estão registados na Torre do Tombo e nos arquivos da PIDE. Há uma cultura. Há um património imaterial, único.

Homens e Mulheres que viveram a democracia, a luta pela democracia, o amor à Liberdade, o combate pelos direitos humanos, com dignidade, em gestos e atitudes que foram mais, muito mais, que um acto abnegado de coragem ou bravura, ou de acaso da vida.

Foi acção politica! Foi acção de resistência! Foram décadas! Foram gerações!

Foram homens e mulheres que, no silêncio, muitos sem puxar de louros, viveram as suas vidas com a palavra Dignidade, de quem não dobra o joelho, de quem não teme os poderes instituídos, reis de circunstância, e, por isso, assumiam as vidas com a força de ser cidadão, cidadão de corpo inteiro, com direitos e deveres.

Cidadania! Ser cidadão! Actos de consciência civica! Actos de Liberdade!

Homens e Mulheres que sonharam, sofreram, de forma resiliente, com lágrimas no coração, para ver nascer aquela madrugada pura e limpa. Quantas lágrimas de mães, filhos e netos, que não sentiram a prisão, mas sentiram no coração, a luta dos seus, pelo amor à Liberdade.

“Por trás daquela janela está meu amigo”, cantava Zeca Afonso, a propósito de um preso político do Barreiro. Alfredo Matos.



Tudo isto ocorreu-me hoje, de manhã, ao passar na Rua dos Resistentes Antifascistas, ali, no Lavradio.

Obrigado a quem, um dia, decidiu prestar esta homenagem, a todos e todas, sim, a todos e todas, que lutaram pela Liberdade, inscrevendo esta memória na toponímia barreirense. Na verdade, estão lá, naquela rua, os presos e os não presos. Está ali a cultura de uma terra, que se fez com trabalho, com memória e com luta. Resistência.

Um legado, um património imaterial que orgulha, sim orgulha, este orgulho de amar a Liberdade. De resistir. De ser resiliente. De ser Barreiro.



O Barreiro foi uma terra de resistência. O problema é que, nos últimos tempos tem havido por aí uma lufada de pensamento que na ânsia de tapar da história o PCP, até tem tapado a história da resistência, da cultura barreirense. Aliás, por vezes, até se cultiva a ideia que o atraso, o dito abandono do Barreiro, a não exploração do potencial, tudo isso, afinal, só tem um culpado o PCP.

A suburbanidade a que esta região tem sido legada a culpa é do PCP. Coisas da democracia. E depois queixam-se dos votos de protesto ou de indignação contra o sistema. Ontem era o PCP o culpado, e, um destes dias, outros vão seguir-se. Aliás, na recente campanha eleitoral já se dizia que a culpa do atraso é da esquerda. E, quem sabe, mais tarde, serão outros, se isto, de facto, continuar a ser o paraíso do imobiliário, sem empregos, e, não passar de uma zona suburbana que diariamente viaja para a outra margem. Pois, é verdade, cada vez são mais.

Depois será tarde. Enfim, basta recordar Brecht!



Mas, entretanto, quando bebia uma café, apareceu amigo que me contou estórias dos seus dias, aqui no centro do Barreiro, quando viveu o drama de sentir o Parque António Oliveira Salazar, hoje Parque Catarina Eufémia, cercado por GNR, após uma guerra de ovos, nos dias de carnaval, e, na fuga, levou uma cacetada no ombro, que rasgou a pele, e, ainda hoje, tem a marca desses dias no corpo e no brilho dos seus olhos. A GNR metia medo.

Não sei o que ele é politicamente. Não é do PCP. Nunca foi preso. Nem nunca foi à Pide. No seu Bairro operário havia bufos. Havia lutadores. Esteve nas lutas das eleições de 1973. Ele, como muitos jovens da sua geração, têm bem gravado na memória esses dias de amor à Liberdade, memórias da cultura da sua terra. Terra dele, que não é a minha. Minha, é só a raiz que cá tenho dos meus filhos e neta.



Uma geração que viveu o amor à Liberdade, uma luta que ficou inscrita em muitas gerações, que nem cavalos, baionetas, ou bastonadas, silenciavam.

Uma cultura que ela mesma está cantada nas vozes de poetas, como Manuel Alegre: “Há greve no Barreiro!”

“Não esqueço aquele dia que os cavalos entraram no café Pilar, ali no Largo da Santa”, disse-me ele.

Eu comentei : “Sabes, tu devias ser condecorado pela tua bravura e coragem”. Ele sorriu. Eu sorri.



Sim esta rua, a Rua dos Resistentes Antifascistas é, sem dúvida, uma rua com muitas memórias.

E, diga-se, ali, começam já, nos dias de hoje, a estar inscritas as memórias do presente, que vão ficar como memórias futuras – o Mercadona está a nascer. O novo potencial.

E lá longe, muito longe, ficam tantos sonhos…que se perdem nas águas do Tejo.

António Sousa Pereira
TE – 180
Equiparado a Jornalista

15.03.2024 - 09:46

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