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Inferências - Barreiro
Acção política reduzida a altruísmo e bravura é como pão sem sal

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Acção política reduzida a altruísmo e bravura é como pão sem sal Relembrar os homens e mulheres que, com dignidade, assumiram com consciência cívica, cidadania activa, e, com acção política, viveram na plenitude, a vontade de transformar e construir um mundo melhor é, para mim, evocar a cultura da comunidade barreirense.

Evocar a memória dos homens e mulheres que, aqui, no Barreiro, deram o seu contributo para ver nascer a Liberdade e com ela a emergência da democracia, é recordar a energia de um povo, que nunca se calou, que sentiu a solidão do silêncio e cantou com lágrimas no coração a força da vida em movimento, porque sabiam que a vida é para erguer.

O amor à Liberdade é um património cultural da comunidade barreirense, um património imaterial, inscrito na memória de sucessivas gerações, que passou de pais para filhos, de avós para netos, de vizinhos para vizinhos, de amigos para amigos, uma cultura forjada nas palavras solidariedade e fraternidade. Um amor que floresceu em arte, na vida comunitária, naquelas jornadas de amor ao bairro e à Vila, nos dias após o 25 de Abril.

O Barreiro é uma terra cujas vivências associativas e culturais são indissociáveis da sua cultura operária, de corticeiros, de ferroviários, de operários químicos, metalúrgicos, de pescadores, de gente vinda de muitos lados, que, nesta margem do Tejo, aprendeu a viver a palavra dignidade, essa palavra que se conjuga com verticalidade, e, também, aprendeu a viver aquelas palavras que ensinavam - ser culto é saber semear a palavra solidariedade.

Sim, muitos foram presos pela policia politica, pela PVDE, pela PIDE, pela DGS, homens e mulheres com partido, homens e mulheres sem partido, pessoas com convicções, com valores, com ideais, todos eles agiam, não por um acto de bravura ou altruísmo, ou por uma atitude de circunstância.
Queriam ser livres. Queriam sonhar. Faziam da sua vida acção. Colocavam os olhos e o coração no fazer futuro, com gana, com verdade, com intensidade, com um objectivo colocar ponto final na ditadura.
Era uma cultura inscrita no coração e na consciência, que circulava no sangue, silenciosamente, e sentia-se a pulsar nos selos que se vendiam para ajudar as famílias dos presos políticos ou os desempregados por actos de verticalidade.

E, sublinhe-se que, para além das centenas, que constam nos registos da Polícia Política, e, esses, todos e todas, merecem um enorme respeito, um respeito que começa por não classificar a sua acção politica e cívica, como actos de bravura e altruísmo, porque, isto, é reducionista e esvazia o sentido do calor humano da acção politica. Uma acção corajosa e abnegada, que se inscreve num pensamento em acção, que vai para além, muito para além do gesto de altruísmo e para além, muito para além de um gesto de bravura. Era resistência politica.

Sim, conheço e conheci muitos homens e mulheres que não tendo sido presos, sentiram na pele e no coração a repressão. Jovens que saíram à rua para enfrentar os cavalos da GNR.
Sim, quantas mulheres viveram em lágrimas, em silêncio, com muita dor, em dias de tristeza, mágoa e, com serenidade, lutaram para dar de comer aos seus filhos e filhas, netos ou netas, enquanto seus familiares estavam presos. Heroínas.
Sim, que justa homenagem seria de prestar a estas heroínas da Resistência, uma homenagem que todas elas mereciam, aqui e agora, nestes 50 anos do 25 de abril, para que nunca se esqueça esta memória de amor à Liberdade que está no coração da cultura barreirense. Consciência Cívica.
“A minha avó sofreu tanto, tanto, quando meu avô esteve preso”, nesta frase está a consciência, e inscrita a história de um povo, desta terra Barreiro.
É verdade, estes homens e mulheres, que ao longo de gerações resistiram, uns anarquistas, outros comunistas, outros socialistas, outros católicos, uns com partido, outros sem partido, uns ateus, outros crentes, eram homens e mulheres que partilhava um sentir e um saber comum, esse sentir e esse saber, que se fez cultura, que se fez memória, que se fez história, uma história que está inscrita no sangue. Tantos heróis. Homens e Mulheres de grande dimensão cultural, exemplos de humanismo.

Os lutadores pela Liberdade. eram homens e mulheres que assumiam os seus valores e ideais com consciência, sentiam orgulho nos seus valores, uns viviam-nos com consciência de classe, outros assumiam a consciência de partido. Todos assumiam essa consciência com orgulho, esse orgulho cultural de solidariedade, inscrito nas raízes do povo, na vida comunitária, associativa, cooperativa, maçónica, religiosa, que se forjava na palavra Barreiro. Um exemplo para Portugal.

“Sou do Barreiro”, era uma expressão dita, por quem cá tinha nascido, e, por aqueles que para cá vieram viver, por cá contruíram as suas famílias.
Esta cultura barreirense de Liberdade e Solidariedade nada, mesmo nada, tinha a ver com actos de cisrcuntâsncia de bravura ou altruísmo, eram actos forjados numa cultura, com uma relação directa com a história, com a história em movimento, que nascia nas relações comunitárias e forjava-se na consciência.
Uma consciência vivida por dentro do peito, que sentia o peso da repressão, que vivia o medo, que sentia a fome, que era ameaçada com o desemprego, que sentia a censura, essa, que cortava com o lápis azul a palavra povo.
Enfrentar tudo isto, com coragem, sem medo da prisão, ou da perseguição dos donos do mundo, não era um gesto de bravura ou altruísmo, era uma acção civíca, era o viver a cidadania de corpo inteiro – Dignidade!
Era, acreditam, uma acção de vida permanente, diária, no silêncio da noite, na madrugada, acreditem que era uma acção que temia os bufos, que temia a GNR, temia a tortura, que sentia o medo nos ossos, que resistia. Resistia por causas, por valores, por ideais, por amor à Liberdade, pela democracia, pelo fim da guerra colonial, pelo fim da censura, pela dignidade da vida, e, isto, nada disto, é, apenas, um gesto de bravura e altruísmo.

Sim, a dignidade de uma vida, não se conjuga com um gesto de bravura, que é um comportamento de quem não tem medo, de quem age perante uma situação. Os e as resistentes tinham medo, medo de perder a vida, como muitos perderam e não viverem para ver nascer o dia “puro e limpo” da Liberdade.
A resistência conjuga-se com resiliência. A resistência é acção. Não se conjuga com altruísmo, nem se conjuga com filantropia, actos ocasionais.
A resistência, conjuga-se com solidariedade, com acção comum, essa é a cultura barreirense, que eu aprendi a amar, nas vivências da vida associativa. Esse é o património imaterial desta cidade, único.

Na verdade, tudo isto que estou a escrever vem a propósito de uma distinção, com a qual este ano decidiram “agraciar” aos cidadãos que nasceram ou viveram no Barreiro e que foram presos políticos pela PIDE.
Quando tomei conhecimento da atribuição desta “Medalha de Bravura e Altruísmo”, aos presos pela PIDE, esta, que, diz-se, foi uma condecoração criada para atribuir a pessoas individuais que revelem com acções , espírito de sacrifício, bravura, coragem e abnegação pelo outro, pela comunidade ou sociedade em geral”, fiquei estupefacto. Incrédulo.
E, ainda mais incrédulo fiquei ao saber, que a Assembleia Municipal do Barreiro, aprovou a entrega deste “agraciamento”, por unanimidade e aclamação – PS, CDU, PSD, BE e Chega.

Fiquei incrédulo por várias motivos que acima referi, mas, acima de tudo, por sentir que a atribuição desta distinção não é uma forma de prestar uma justa homenagem aos lutadores e lutadoras pela democracia e pela liberdade, mas sim, reduzir a luta da resistência a actos de bravura e altruísmo.
Isto, para mim, é ausência de pensamento politico, é puro populismo.

A acção política nasce na contemplação do mundo e da vida. As causas e os valores, nascem na interpretação da vida, forjam-se nos sonhos que se transformam em ideais. É tudo isso que move a acção política. Resistência. Resiliência. Não é um acto é a vida.
Agimos pela democracia contra os ditadores.
Lutamos pela Liberdade contra os opressores.
Amamos a acção politica por causas que apostam na transformação do mundo.

A resistência antifascista não foi um acto de altruísmo, nem foi um acto de bravura, foi acção politica consciente, dura, com medos, com calafrios, com consciência de fazer futuro.
A acção politica e de cidadania activa não é altruísmo, não é foco de coaching, não é marketing ocasional, não é bravura. Até pode ser, se quiserem, por pragmatismo de circunstância, ser tudo isso, sem ser nada disso, porque, afinal, acção politica reduzida a altruísmo e bravura, é como pão sem sal.

O sal da acção poltica na resistência, não é a bravura, nem o altruísmo, é a consciência civica, é o agir com ideias, com valores, com medo, sem filantropia, mas com amor à vida e ao sonho de construir futuro.
É este o legado que devemos dar aos nossos filhos e netos, dizer-lhes que a resistência não é um acto de bravura e altruísmo, é a vida de uma comunidade em movimento, um passado construído de acção civica, de amor à Liberdade, inscrita no coração e na consciência de homens e mulheres que amaram a Liberdade.

É essa acção civica e de cidadania que devemos continuar a semear no futuro, motivando a participação no fazer cidade.
É por tudo isto, que afirmo, a minha indignação, o meu direito à indignação e discordância da atribuição de uma distinção de Bravura e Altruísmo, a homens e mulheres que lutaram por ideais e semearam futuro. Isso é que é lindo!
Sublinho que, reduzir as atitudes e acções politicas de resiliência e resistência de barreirenses, presos ou não, a actos de altruísmo e bravura, é rever a história, é negar a memória, é negar o futuro inscrito na palavra Liberdade.

António Sousa Pereira
TE – 180
Equiparado a Jornalista



20.03.2024 - 01:55

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