inferências
Aprendi com os Jogos Juvenis do Barreiro
– Liberdade e Cidadania
Por António Sousa Pereira
Fazer cidade. Participar na vida da cidade, com valores – democracia, solidariedade, criatividade e Dignidade!
Fui convidado para participar numa conversa sobre os Jogos Juvenis do Barreiro. A minha participação, neste evento histórico do concelho do Barreiro e do país, foi no começo dos anos 70. Integrei, no ano de 1972, a Comissão Organizadora na área da comunicação. Vivi, portanto o quotidiano dos JJB nos anos que antecederam o 25 de Abril e o final dos Jogos, após a Revolução. Uma experiência de vida que guardei nas minhas memórias e foi uma lição inesquecível.
Por essa razão, nesta conversa, tomei por opção responder a uma pergunta: Que aprendi com os Jogos Juvenis do Barreiro?
Na minha memória registei datas que marcaram a minha vida e a minha vida nesta comunidade onde me integrei, que não sendo a minha terra, é a terra dos meus filhos e da minha neta.
Recordo que foi no dia 21 de setembro de 1973, que o António Aires, um homem vertical, de grande simplicidade, humanista, voluntário, convidou-me para assumir a função de editor de noticias sobre a actividade dos JJ e do Boletim «Continuando», substituindo nessa função o Jorge Morais, que se afastou para exercer funções na redação do jornal o República. O Jorge que regularmente, discretamente, entregava-me exemplares do jornal Granma, órgão oficial do Partido Comunista Cubano.
Recordo o dia que o publiquei o meu primeiro artigo no jornal República, no dia 25 de setembro de 1973. Quando ao fim da tarde, na banca dos jornais, junto ao Tico ao Tico, comprei o jornal, senti uma emoção enorme de ver impresso um artigo escrito por mim, ainda por cima naquele jornal, que eu sentia ser uma voz de Liberdade e Cidadania. Igualmente iniciei a minha publicação de artigos no jornal “Noticias da Amadora”, artigos censurados. Recordo aquele título de uma artigo – “Jogos Juvenis do Barreiro: Desporto do povo para o povo”. A censura cortou - “ desporto do povo para o povo”. E foi aqui, nesta experiência, com o Boletim “Continuando”, que era uma provocação ao título da revista – Continuidade - editada pela PIDE, a policia politica, de um regime castrador, sim foi aqui, que aprendi o que é o direito de ter opinião e, na prática, sentir o que é a castração da opinião exercida pelo poder politico.
Liberdade - trabalho voluntário e trabalho de equipa
Então, vamos lá ver que aprendi nos Jogos Juvenis do Barreiro, a primeira coisa que aprendi naquela convivência diária, foi a palavra Liberdade. Sentir e saber que estávamos todos ali, por vontade própria, livremente, a contribuir para uma causa humanista e desenvolvimento social.
Aprendi o significado e o sentido do trabalho voluntário, a energia da ação comum, a alegria de partilhar uma causa. Uma participação livre e voluntária. Um trabalho de equipa. Sentir que o trabalho individual de cada um era um contributo essencial que dava energia para erguer as actividades desportiva e culturais.
Todos tinham responsabilidades específicas, e, todos sabíamos que o resultado final era o trabalho de todos. Cada parte era parte do todo. Unidos nos objectivos. Solidários.
Democracia - vivíamos a participação de forma democrática.
Aqui aprendi o significado da palavra democracia. O tal sentido que o que é de todos por todos é decidido. Vivíamos a participação de forma democrática. Existia um forte sentimento de trabalho de grupo. Cultivávamos a amizade, que ficou para além dos JBB, pela vida.
Senti o significado do que é o respeito pelos mais velhos, o reconhecimento da experiência e sabedoria que os que viviam há mais tempo aquele projecto, partilhavam com os mais novos, sem pedantismo, sem sobranceria. Uma humildade que se traduzia em fraternidade. Sim, respeito, fraternidade, amizade, que os mais novos recebiam e partilhavam
Recordo nomes, de grande nobreza, homens com H grande, que davam sem querer nada em troca, puros e verticais - o José Picoito, o Sebastião Pássaro, o Valdemar Nogueira, o Alberto Graça, o Jorge Morais, o António Aires ( que foi o meu Mestre, ele nunca me disse, mas soube depois, após o 25 de abril, que era um homem do PCP ), a Arlete Candeias, o Candeias, o Delgado, o Eduardo Quaresma, José Correia, o Sebastião ( do Bairro das Palmeiras) e, tantos outros que ficaram perdidos na memória.
Recordo que o modelo de organização permitia a existência de relações verticais e horizontais. Todas as áreas de ação eram bem clarificadas. A Administração. A Secretaria. As Finanças – Tesouraria. A área Cultural. A área de comunicação – equipada com duplicador de stencil ( que servia até para outras coisas, clandestinas). O Desporto – por actividades, com coordenadores e equipas. Realizavam-se reuniões periódicas, existia diálogo e planificação. Um trabalho comum, para o bem comum.
Outra nota que registo é que nas minhas vivências nos JJB sempre senti a existência de plena autonomia em relação ao poder político ou económico. As relações existentes eram de parcerias, de cooperação, sem interferências.
Modelo desportivo – “o desporto pelo desporto”
Nos JJB existia uma salutar competição. O importante era participar. Existia uma rivalidade saudável. Nunca assisti a conflitos, nos jogos ou provas, quer devido a resultados, arbitragens ou de outra natureza.
O Campo do 31 de janeiro, era um verdadeiro palco de emoções festa e de convívio. Era lindo sentir aquela realidade - vencer é participar.
Os clubes quer os tradicionais, que se envolviam de forma mobilizadora na participação nos JJB, também, depois aqueles que nasciam de forma informal nas ruas, ou bairros, viviam com intensidade os JJB. Aliás a ligação dos JJB ao terreno à comunidade eram os clubes.
Solidariedade – um trabalho que nascia e existia para a comunidade
É verdade, vários clubes no Barreiro que nasceram em grupos de rua ou bairro, para participar nos JJB, o Carliz, o Não te Irrites, alguns, ainda nos dias de hoje são uma referência na vida associativa local, como o Juventude do Lavradio, o Silveirense.
Os JJB tinham uma profunda ligação à comunidade, pode dizer-se, com linguagem dos dias de hoje – “era um trabalho em rede”. O 31 de janeiro, o Leças, o Cine Clube do Barreiro ou Luso Futebol Clube eram clubes que funcionavam como pontos de apoio dos JJB.
Cidadania - Escola de Formação e criatividade
Os JJB foram uma escola de formação desportiva e cívica. Nasceram aqui muitos que, posteriormente, seguiram as suas carreiras desportivas, sendo referência no desporto nacional. Recordo Chalana e seria giro, fazer-se um levantamento de tantos nomes do desporto nacional que deram os primeiros passos nos JJB, quer atletas, quer dirigentes.
Os JJB viviam, de forma viva e activa, a cultura da vila operária, aquela certeza que nem só de pão vive o homem. A cultura da fábrica.
Existiu sempre, a preocupação na Formação, recordo o Curso de Cinema, com o Padre Vila Boas, que decorreu durante varias semanas, e, para divulgar as matérias foi editado um Boletim «Objectiva Zero».
Recordo a celebração de efemérides, com ações de rua, no Parque, junto à estátua de Alfredo da Silva - Dia Mundial da Criança e Dia dos Direitos Humanos. A promoção de actividades culturais foi sempre uma das marcas dos JJB.
Dignidade – preservação das memórias do futuro que estão no presente
A comunicação era, de certa forma, uma das vertentes da actividade cultural, porque a comunicação tem que ser cultura, faz parte do pensar e sentir o tempo que vivemos. Por essa razão promovia-se o envio de noticias para jornais. Mantinha-se Boletim «Continuando». Efectuava-se o acompanhamento de actividades, com reportagens e registos fotográficos. A consciência da preservação das memórias do futuro, que estão sempre inscritas em cada presente. E sinto uma alegria enorme de ter sido os JJB, o tempo, o lugar e o espaço que me fez descobrir esse bichinho do jornalismo regional e local.
É isso, guardo muitas recordações dos JJB, quer de pessoas, quer de acontecimentos. Os JJB foram um tempo de aprendizagem da Liberdade, da cidadania, de sonhar com o futuro. Amizade. Dignidade. Respeito.
Nunca esquecerei, aquela festa de encerramento do JJB, no ano 1973, que aconteceu no GD «Os Leças», onde escutei uma intervenção calorosa e apaixonada do Mestre Manuel Cabanas. Onde escutei os sons do Grupo Coral Fernando Lopes Graça. Uma actuação que, ainda hoje, soa no coração. Dignidade!
Uma epopeia que nasceu no Barreiro
Os Jogos Juvenis do Barreiro foram uma marca nacional. Tive a honra de participar num encontro nacional, que decorreu no concelho da Moita.
Nos Encontros Nacionais de JJB, recordo que participavam representantes de Abrantes, Guimarães, Seixal, Moita, Barreiro.
No encontro da Moita, o último, esteve em debate uma proposta de ligação dos JJB à Mocidade Portuguesa. O Barreiro teve um papel importante para que essa proposta não fosse aprovada. Estivemos contra e a nossa posição venceu.
Os JJB foram uma epopeia. Uma realidade não mitológica. Envolveu gerações. Envolveu crianças, jovens e adultos. Homens e Mulheres.
Uma epopeia que deve orgulhar a histórica cívica, cultural e desportiva do concelho do Barreiro. Uma história por fazer. Um testemunho de Liberdade e Cidadania, que deve ser preservado e nunca entrar no esquecimento.
Os JJB contra ventos e marés mantiveram-se até aos dias da Liberdade, findaram com os dias da revolução, quer devido às mudanças sociais, quer por ter surgido um outro modelo cultural e desportivo, que era um misto entre o voluntariado e uma dinâmica estatal – o GRANDECUBA - Grupo de Animação Desportivo e Cultural do Barreiro, que optou por promover os Jogos Populares do Barreiro.
Os JPB, por fim com a extinção do GRANDECUBA, ficaram pelo caminho.
Nos anos 90, ainda, no âmbito do FORUM ASSOCIATIVO, debateu-se a ideia de retomar os JJB. Não passou da ideia.
Porque, nesse tempo começou a desindustrialização, a desferroviarização, e, a descormercialização, o Barreiro começou uma nova era…que se espelha no tempo que vivemos.
Agora, neste século XXI, o que pode restar é a energia humanista desta memória histórica, e, sermos capazes de deixar para os vindouros a força deste legado, que, sem dúvida, é um exemplo de vivência da Liberdade e da Cidadania.
Fazer cidade. Participar na vida da cidade, com valores – democracia, solidariedade, criatividade e Dignidade!
Foi, afinal, isso que aprendi com os JJB!
António Sousa Pereira
TE – 180
Equiparado a Jornalista
19.12.2024 - 15:55
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