inferências

BARREIRO - Por dentro dos Dias
Os instantes - onde descobrimos a solidão e sentimos a palavra amor
Por António Sousa Pereira

BARREIRO - Por dentro dos Dias<br />
Os instantes - onde descobrimos a solidão e sentimos a palavra amor<br />
Por António Sousa Pereira Ontem, ao final do dia, fui fazer um TAC, numa Clinica do Barreiro, quando o exame findou comentei: “Foi rápido”. A Técnica, em resposta, disse-me: “Agora, já pode ir escrever a sua crónica”. Fiquei em silêncio a olhar e sentir nos meus olhos o seu sorriso e simpatia. Agradeci. Foi então que pensei, olha, cá está um bom “leit motiv” para reiniciar as minhas crónicas por dentro dos dias.

Há uns tempos que ando com este desejo preso nos nervos. Apetece-me escrever. Mas, depois fico encostado à penumbra das palavras. Gosto da crónica, sempre gostei da crónica, como género e como escrita que nasce motivada pelo sentir e pensar o tempo. As pequenas coisas do quotidiano, afinal, são elas que forjam os nossos dias, são elas que contribuem para encontrarmos no tempo que vivemos a energia que dá paixão e alegria para abraçarmos a vida.

Hoje, ao fim do dia, penso escrever a minha crónica. Dou comigo a pensar na tarde de ontem, na Clinica, na sucessão de pequenos nadas que, ali, permitiram sentir o presente e recordar o passado. Sentei-me e enquanto aguardava, ao meu lado estava sentado um senhor que desconheci. Mas, olhei para ele e pensei - conheço este rosto não sei de onde. Discretamente voltava a olhar procurando descobrir nos confins dos nervos uma sensação que despertasse o conhecimento. A esposa dele que tinha estado a fazer um exame, regressou. Foi então que descobri e disse: “Eh pá, olhei para ti, e não conseguia descobrir quem tu eras, mas tinha a sensação que te estava a conhecer. Só agora, ao ver a tua mulher, descobri quem eras”, Cumprimentamo-nos. A mulher dele reconheceu-me de imediato, como eu a reconheci. Era o meu amigo Sérgio que não via já há algum tempo. “Estamos a envelhecer, pá!”, comentei.

O Sérgio e a esposa saíram. Fiquei a aguardar. Entretanto, aproximei-me da recepção. A Técnica Administrativa disse-me: “Eu conheço-o, da SFAL, era o presidente da direção, quando eu andei lá na Acrobática. Agora está lá a minha filha”. É assim, palavra puxa palavra e surgiram as recordações de tempos idos a trespassar a nossa conversa. Os saraus na Escola Álvaro Velho. O primeiro sarau no Pavilhão Municipal. O jornal Cachaporreiro. Os títulos nacionais em Loulé. O professor João. A professora Cristina, que ainda andam por lá e são pilares da ginástica de formação e acrobática. Hoje anda por lá também a minha Alice. Recordámos as velhas casas de banho, que eram um perigo. “Tivemos que começar a utilizar as casas de Banho do Café”- disse eu. “Sim, por trás da cozinha”, disse ela, nas suas recordações de jovem atleta. E, depois, com muito trabalho, a energia de uma equipa surgiram as novas instalações, os novos balneários e o chão novo no salão. Tanta obra. Tanto sonho. “Por vezes sinto saudades desses tempos”, disse-lhe. Afinal, é assim, de repente o passado vem até nós na pureza e na simplicidade de uma conversa.

Sai para lanchar. Encontrei a Gina. Que trabalhava no Restaurante “A Transmontana”, nos dias que foi apresentada a primeira edição impressa do jornal Rostos, no ano de 2001. Uma festa. Uma esperança.
O mesmo lugar onde decorreu o jantar de despedida, quando pedi a demissão do cargo de Director do “Jornal do Barreiro”.
Fui até ao seu café, de braço dado com ela. Lanchei. As conversas ecoavam em torno do caso Tuti .- Frutti e das malas que voaram nos Açores. A Gina construiu, ali, perto da Avenida do Bocage, o seu projecto empresarial. Continua com o seu sorriso. Edificou a sua vida.
Depois, fui até à Santa Casa da Misericórdia do Barreiro para dar um abraço ao Kira. Estava a jantar. Senti que estava porreiro. “Pareces mais novo. Fico feliz”, comentei. Observei a alegria a fluir nos seus olhos ao ver-me, ao fim da tarde, num dia frio de inverno. A felicidade sente-se no olhar. O Kira tem vindo a desenhar. Tem já produzidos um conjunto de trabalhos que permitem realizar uma exposição. Um novo Kira, mas o eterno criativo. Renasce sempre. Será importante que a sua exposição se realize, um gesto de fraternidade, para lhe dar força e contribuir para renovar a sua criatividade.

Voltei para Clínica, sentei-me a esperar pela minha Lurdes, que também veio realizar diversos exames. Estava por ali sentado a olhar um painel verde, onde explodia a força da natureza. Luminosa. Ao meu lado, uma senhora idosa, numa cadeira de rodas, aguardava. De repente, como quem acorda para a vida, perguntou: “Quem me trouxe até aqui foi-se embora? Estou aqui sozinha?!” Ao seu lado, de pé, a funcionária da instituição que a acompanhou respondeu : “Não está sozinha. Estou aqui consigo”. Sorriu. Ficou silenciosa a sorrir.
Outra idosa, sentada em frente, começou a conversar com a funcionária. Falava sobre um casal que na instituição vive no mesmo quarto: “Eles não se separam um do outro. Quando ele vai para algum lado e demora um pouco, ela começa logo a perguntar por ele”, comentava. “Sente a falta dele”, respondeu a funcionária.
“Um destes dias, ele demorou um pouco e ela começou a chorar e a perguntar: Ele não está aqui? Ele morreu?”, dizia a senhora, com um rosto marcado pela força da vida. “Ela tem 91 anos. Ele 92 anos”, acrescentou.
“Estão como eu, nos meus 91 ou 92, já nem sei a idade, perco-me com os anos”, disse.

Enquanto estou por ali sentado. Sinto a vida a pulsar no coração. Sinto a força daquelas palavras. Palavras feitas de anos, feitas de tempo vivido. A ansiedade que causa nervos , A angústia do esgotamento do tempo - a vida e a morte. O amor. A solidão. O silêncio que abraça os nervos. Aquele é um tempo já sem lágrimas. Um viver com aquela certeza de atingir os limites do tempo vivido.
Olhos aqueles dois rostos, belos, uma beleza marcada pela força das rugas. Olhos brilhantes que respiram saudade e ternura. Afinal, a beleza da vida, é, sem dúvida, esta realidade, estes sentimentos de paixão pelo tempo dentro do tempo.

Sim, ontem ao fim da tarde - vivi memórias inscritas em esperança, e, senti a saudade a beijar o futuro.
É assim, há momentos na vida nos quais podem nascer crónicas, registo de instantes onde se inscreve essa tensão entre a vida e a morte, entre o amor e a solidão. Descobrimos a beleza da palavra amor a forjar os nervos do tempo e tecer as páginas da vida.
Todos nós, somos, o tempo que vivemos com paixão…o resto é sobreviver.

António Sousa Pereira
TE – 180
Equiparado a Jornalista

06.02.2025 - 18:23

Imprimir   imprimir

PUB.

Pesquisar outras notícias no Google

Design: Rostos Design

Fotografia e Textos: Jornal Rostos.

Copyright © 2002-2025 Todos os direitos reservados.