inferências

Barreiro - Pode dentro dos Dias
Até já pá, a gente encontra-se um destes dias.

Barreiro - Pode dentro dos Dias<br>
Até já pá, a gente encontra-se um destes dias. Olho, serenamente, a fotografia. Esta que edito, aqui, a acompanhar este texto. A fotografia que regista o nosso último encontro. Recordo aquele instante. A tua pose poética. Sereno. O olhar a penetrar a objectiva. Vertical.
A consciência que uma fotografia é um instante que regista a eternidade. Memória. Enquanto focava, penetrei na cumplicidade do teu olhar. Escutava, através da lente, as palavras que transmitias no teu silêncio. É isso. verticalidade! Tranquilidade!

Tinhas acabado de celebrar os teus 80 anos. Levei um bolo para soprarmos as velas e cantarmos os parabéns. Os dois, ali, ao meio da tarde, naquele recanto da tua e nossa cidade, festejamos a vida. A vida que está inscrita nesta cidade que abraçavas no teu coração e guardavas nos ossos da memória.
Sorrimos. Tu, tal como eu, sabemos que o melhor da vida é sorrir. Sorrir e Amar.
Tinhas acabado de assinalar os teus 80 anos. Neste ano de 2025, afinal o ano que marca tua partida rumo à eternidade.
Por vezes, entre nós, bastava um olhar para comunicarmos as lágrimas ou alegrias. Tantas recordações. Tantas histórias. Momentos que tu sabes e eu sei que sabes, e tu sabes que eu sei. Partilhámos. Conversámos. Festejámos. Ali, no Atelier da Recosta. Ou no nº 10, do Bairro de Santa Bárbara, que, afinal, devia ser pensado como um espaço para criar um “Atelier Memorial do Kira”, numa iniciativa conjunta da Escola Profissional Bento Jesus Caraça, o Espaço Memória e o Arco Ribeirinho Sul. Um espaço vivo. Memória com futuro.

Não concretizámos a exposição que sonhámos. Mas, acredita, havemos de realizar esse sonho, com os teus desenhos e o teu espólio que conseguimos guardar no Espaço da Memória.
Nesse último dia, que nos olhamos, olhos nos olhos, depois de festejarmos o teu aniversário, fui até ao teu quarto. Sentado na tua cama passei, um a um os teus desenhos, os teus últimos trabalhos, feitos de esperança, de amor, de fraternidade. Fotografei vários.
“Há dois estilos diferentes”, dizias, sentado na cadeira de rodas.
Sentia-se essas diferenças. Nuns as cores davam dor à solidão. Noutros o colorido dava amor à vida.

Sabes Kira, tu és enorme. A tua obra espalhada por diversos recantos do mundo, merece um dia que seja editada uma antologia critica e histórica. Tu és parte integrante do património cultural do Barreiro e de Portugal. Está em ti o surrealismo, o impressionismo, o modernismo assim como o realismo. Existe um estilo próprio de luz, cor e profundidade do espaço, de contrastes, de sátira e critica social. Não és neutro. A tua arte tem uma dimensão hermenêutica – sentes, pensas e interpretas o tempo que vives. Os lugares. As pessoas. O mundo. Os valores. O divino. Tinhas crenças. Eu sei.
Além de artista plástico, tens trabalhos maravilhosos em cerâmica. E tinhas o dom da escrita, uma escrita que cativava os nervos. Os teus livros, editados e desconhecidos, são hinos ao amor. Obras que mereciam ser reeditadas, pela actualidade, pelo afecto que transmitem, pela sensibilidade que toca a raiz do coração.
Os teus cartoons espalhados em vários jornais são irónicos, pejados de critica social e fruto de um autor que escolhe sempre um lado da barricada. A liberdade.

Um dia entrei no teu Atelier na Recosta. Estavas a produzir uma série de quadros dedicados a diversas personalidades. Antero Quental. José Saramago. Fernando Pessoa, e muitos outros.
Olhei um quadro fixamente. Perguntas-te: Quem está neste quadro?”. Olhei e respondi. “Fernando Pessoa”.
“O quadro é teu, leva-o. Foste a primeira pessoa a identificar este quadro”, comentastes. Tenho quadro na minha sala. Uma obra esplêndida. Sublime. É o Pessoa na sua obra a Mensagem. Cumpriu-se o Mar. Falta Cumprir-se Portugal.
Tu sabias, que entre nós, bastava um olhar para comunicarmos as lágrimas ou as alegrias. Foram muitos momentos de cumplicidade. Nunca irei esquecer a vida que partilhámos. Os instantes que abracei as tuas lágrimas. E os instantes que vivi a tua felicidade, por exemplo, naqueles dias que transformaste o teu atelier na Recosta, como uma galeria de referência na AML.
Por duas ou três vezes pediste para escrever textos para catálogos de tuas exposições. Lias os textos, ao meu lado, e, por vezes vi lágrimas de alegria descerem nos teus olhos. Recordo um desses instantes junto ao Bar da Mila, a tua amiga, que deves ter encontrado por essas bandas, aí, onde estás divertido a olhar para os acontecimentos do nosso quotidiano.
Quando te ofereci o meu livro – “Nu, silêncio escrevo-te!”, depois de o leres disseste: “Tu és um poeta e um filósofo”. Mandei-te, como sempre, para um tal sítio. Rias.
Eras um homem bom. Eras um homem que dava tudo de si e só pedia em troca amizade.

Tu para mim eras enorme. Um génio. Tinha uma profunda admiração por ti e pela tua obra. Tinha orgulho de ser teu amigo. Estava lá, sempre, nas horas boas e más. Discutíamos. Conversávamos. Soubemos sempre manter a pureza da amizade, essa que nasce na sabedoria que começa no respeito pelo outro, e pelo respeito da personalidade de cada um. Como eu te dizia, a minha Liberdade não acaba em ti, em ti começa a minha Liberdade.

Tu és um criador que nasceu antes de tempo e fora de tempo. Amavas a vida. Amavas amar a vida. Amavas amar. Tinhas no teu coração a ternura, a ironia. Não tinhas preocupação em gerir imagem, em cultivar imagem. Vivias. Amavas viver.
No silêncio da planície alentejana descobriste a beleza da profundidade das paisagens, do olhar que se perde no infinito, do sentido que sempre colocaste nos teus dias, viver o futuro em cada presente, na luz do sol ou do luar.
No Barreiro, encontraste as cores do Tejo, as miragens de Lisboa, as artes do rio, o esplendor de Alburrica e a força da luz que nasce na palavra fraternidade. Eras um poeta.
A tua arte era a tua interpretação do mundo, dos instantes, observavas a vida, sentias com os teus olhos as emoções e colorias com as tuas mãos as telas da vida. O tempo e o modo. O aqui e a agora. Choravas em silêncio com as cores a colorir as asas do teu maior amor. Ela estava lá sempre na tua obra. Discreta. Uma pomba.

Tinhas acabado de celebrar os teus 80 anos. Sopramos as velas e cantámos os parabéns. Fotografei o instante. Ontem, por mero acaso, estava a guardar a tua fotografia numa pasta do meu computador. Uma pasta que tinha como título «Recordações». Ficaste junto ao nosso amigo Francisco Moura. Nesse instante, toca o telefone. Era a Fátima a dar a triste noticia. Olhei a pasta de arquivo e lá estava, tu e o Chico, na pasta «Recordações». Disse para a Fátima : Fo..-se!
Chorei, olhando os teu olhar, só, no meu recanto, em silêncio...
Até já pá, a gente encontra-se um destes dias.

António Sousa Pereira

30.06.2025 - 09:16

Imprimir   imprimir

PUB.

Pesquisar outras notícias no Google

Design: Rostos Design

Fotografia e Textos: Jornal Rostos.

Copyright © 2002-2025 Todos os direitos reservados.