opinião
Oh não, mais um pacote de medidas para a habitação!
Por André Carmo
Barreiro

A habitação não é um bem como outro qualquer. Nela se inscreve uma tensão permanente entre o seu valor de uso e o seu valor de troca, isto é, entre a sua função social e o seu valor enquanto mercadoria. Em larga medida, na habitação, como noutras matérias, é a correlação de forças existente entre os múltiplos sujeitos políticos presentes numa dada sociedade que define o sentido global das políticas desenvolvidas.
O direito à habitação pode, em determinadas circunstâncias, colidir com o direito à propriedade e é isto que o torna tão polémico e controverso. A satisfação de uma necessidade humana básica pode implicar, em algumas situações, em maior ou menor grau, que se tenha de limitar um direito basilar para o funcionamento do capitalismo global. E nesse caso, a materialização do direito à habitação pode implicar a reconfiguração das relações de propriedade e da posse de terras e, em última instância, a redistribuição da riqueza. Por isso, o direito à habitação condigna constitui, sob muitos pontos de vista, um manifesto para uma sociedade justa e igualitária.
Estamos aqui a afirmar a habitação como direito humano fundamental. Consagrado pela primeira vez no n.º 1 do artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que a longa noite fascista obviamente não abraçou, o direito à habitação condigna, também de alguma forma inscrito nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Objetivo 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis), ganhou relevo com a revolução de Abril.
No n.º 1 do artigo 65.º (direito à habitação (e urbanismo)) da Constituição da República Portuguesa pode ler-se que: “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Não há dúvidas que, em Portugal, a habitação é um direito social que, infelizmente, e não se trata de nenhum excepcionalismo lusitano, foi sempre tratado como o pilar frágil do Estado-Providência. Muitos dos problemas que estamos hoje a experienciar de forma mais severa resultam, seguramente, da incapacidade política para resgatar a habitação da esfera mercantil e financeira e afirmar, de uma vez por todas, a sua função social como um valor primordial para a construção de uma sociedade decente e socialmente mais justa.
Por outro lado, os direitos sociais são, frequentemente, como sucede em Portugal, relegados para a categoria de direitos programáticos. Ao contrário dos direitos cívicos e políticos, perfeitamente compatíveis com as democracias liberais contemporâneas, os direitos sociais, porque implicam quase sempre uma intervenção estatal mais firme na sua prossecução e defesa, apresentam maiores dificuldades de legitimação política, económica e cultural.
Durante muitas décadas (e infelizmente não parece haver progressos significativos), a produção legislativa, as políticas públicas, os programas e os planos no domínio da habitação assumiram um carácter parcelar, errático e inconsistente, criando uma verdadeira manta de retalhos. Às políticas de promoção direta como o PER, o PER Famílias ou o PIMP, somaram-se políticas de reabilitação como o PROHABITA, o PRID e a Iniciativa Bairros Críticos, políticas de arrendamento como a Lei das Rendas, o Novo Regime de Arrendamento Urbano, o Incentivo ao Arrendamento Jovem e o Regime de Renda Apoiada, e políticas de promoção indireta com apoio do Estado como, por exemplo, as Cooperativas de Habitação, os Contratos de Desenvolvimento para a Habitação e a Habitação a Custos Controlados.
Para além deste contexto labiríntico, o panorama habitacional português apresenta diversos problemas, muitos deles diagnosticados pela relatora especial das Nações Unidas, Leilani Farha, que, em 2016, visitou as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Apesar do quadro jurídico-legal avançado e progressista, dizia ela – reverberações de Abril, dizemos nós –, o direito à habitação permanecia por cumprir. Já então o aumento dos custos do acesso à habitação, a persistência de habitações informais com más condições de salubridade (sobretudo nas periferias metropolitanas), a exclusão experienciada por idosos, população com deficiência, ciganos, afrodescendentes, mulheres vítimas de violência doméstica e a existência de população sem-abrigo, foram amplamente documentados. Em larga medida, são problemas há muito diagnosticados, mas que sucessivos governos do PS, com D ou sem D, não têm sido capazes de resolver.
As recomendações feitas foram no sentido da promulgação de uma Lei de Bases da Habitação, então inexistente, de uma avaliação urgente e prioritária das condições de habitação informal, impedindo despejos sem alternativas habitacionais, assumpção de um apoio à população em situação de sem-abrigo, monitorização e regulação de mecanismos indissociáveis da neoliberalização/turistificação urbana, tais como os vistos gold (recentemente, ficámos a saber que metade foi atribuída a nacionais de países de risco no branqueamento de capitais) e o arrendamento de curta duração (ex.: alojamento local), criar condições para uma intervenção pública que assegurasse o acesso às pessoas com menos recursos (definido em termos de custos relativos ao rendimento disponível das famílias e não em termos de mercado).
Em 2017, num tempo em que éramos felizes e não sabíamos, o Governo tomou algumas iniciativas. Nomeou uma Secretária de Estado para a Habitação, lançou a Nova Geração de Políticas de Habitação (aprovada no ano seguinte), no âmbito da qual foram criadas diversas ferramentas para intervir nesta área, nomeadamente: o 1.º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação; o Porta de Entrada – Programa de Apoio ao Alojamento Urgente; o Programa de Arrendamento Acessível; o Porta 65 – Jovem – Sistema de apoio financeiro ao arrendamento por jovens; instrumentos de promoção da segurança e estabilidade no arrendamento; instrumentos de captação de oferta, indicadores de preços e acessibilidade habitacional; o FNRE – Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, Reabilitar para Arrendar; o IFRRU 2020 – Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas; a Casa Eficiente 2020; Planos Estratégicos de Desenvolvimento Urbano/Planos de Ação Reabilitação Urbana; Planos Estratégicos de Desenvolvimento Urbano/Planos de Ação Integrados para as Comunidades Desfavorecidas; o Programa de Reabilitação Urbana de Bairros Sociais na Vertente da Eficiência Energética; o Projeto Reabilitar como Regra; medidas de promoção da manutenção regular e da plena utilização do edificado; o Chave na Mão – Programa de mobilidade habitacional para a coesão territorial; o Da Habitação ao Habitat – Programa de coesão e integração sócio territorial dos bairros de arrendamento público; o Porta ao Lado – Programa de informação; encaminhamento e acompanhamento de proximidade para acesso à habitação; e o Programa de mobilidade habitacional no parque de arrendamento público.
Em 2019, seria aprovada a Lei de Bases da Habitação, que prevê a possibilidade de os municípios elaborarem Estratégias Locais de Habitação (instrumento de carácter obrigatório para que possam aceder ao Programa 1.º Direito) e Cartas Municipais de Habitação que devem ser devidamente articuladas com outros instrumentos de gestão do território (ex.: Planos Diretores Municipais, Planos de Urbanização, Planos de Pormenor).
Ufa! Dão-se alvissaras a quem conseguir articular, coordenar e governar adequadamente e com resultados consequentes este leque pantagruélico de instrumentos, programas, planos e medidas. E chegamos à atualidade e ao anúncio, com a devida pompa e circunstância, como é da praxe, do pacote “Mais Habitação”, relativamente ao qual uma boa dose de cepticismo nos parece não apenas essencial, mas absolutamente indispensável. Afinal de contas, são mais 900 milhões, 5 eixos e 17 medidas que se juntam ao caótico quadro agora descrito. Uns acreditam no Pai Natal, outros na Nossa Senhora de Fátima, outros, ainda, no ilusionismo governamental. Há gostos para tudo.
Lembramos que, em 2017 e 2018, o Governo tinha anunciado que, até 2024, a crise de habitação estaria resolvida. Entretanto, o Programa Nacional de Habitação ainda não foi aprovado no Parlamento, sendo aqui que as verbas do PRR estão alocadas, e já sabemos, por intermédio da Comissão Nacional de Acompanhamento, que as taxas de execução previstas estão muito abaixo do esperado e que a situação dos investimentos ligados à habitação e ao alojamento a custos acessíveis é “preocupante”.
Como escreveu recentemente Helena Roseta: “Temos em Portugal um mau hábito que é preciso combater – anuncia-se muito, legisla-se mal e avalia-se pouco. A informação real sobre os resultados dos vários programas públicos na área da habitação é escassa ou inexistente. Há programas com muito sucesso que foram descontinuados sem se perceber porquê, outros sem qualquer resultado que continuam a figurar”.
O risco de repetirmos os erros do passado existe e o facto de o Governo dar 30 dias aos cidadãos para discussão pública de um pacote, cuja substância e condições de operacionalização permanecem ainda por conhecer – pouco mais temos do que um powerpoint –, é altamente preocupante e revelador de uma atitude de desconsideração e desvalorização dos processos de participação pública que só podemos lamentar.
Aumentar a oferta pública de habitação, proteger os inquilinos dos despejos e dos aumentos estratosféricos das rendas, da especulação fundiária e imobiliária, são imperativos nacionais. Vivemos hoje uma explosiva situação de emergência nacional e as soluções propostas pelo Governo não parecem ser capazes de dar resposta atempada aos desafios com que estamos confrontados.
Medidas imediatas como a fixação de um teto máximo nas prestações bancárias em 35% do rendimento mensal do agregado, travando a subida das prestações das famílias devido ao aumento das taxas de juro (agiotagem bancária), a revogação da “Lei dos Despejos” de Assunção Cristas, a mobilização do património devoluto público com vocação residencial e a regulação muito apertada do funcionamento dos fundos-abutre de investimento imobiliário são algumas das medidas que podem ajudar-nos a caminhar, mais rapidamente, no sentido da efetivação de facto do direito à habitação.
Perdido nos seus labirintos, nas suas opções de classe, o Governo corre o risco de falhar novamente. Se isso acontecer, não deixaremos de ser, como foi recentemente noticiado, a sociedade europeia em que os jovens mais tarde saem de casa dos pais e em que dois terços dos cidadãos só consegue terminar de pagar os seus empréstimos à habitação depois dos 70 anos de idade. Uma sociedade que vê hipotecado o seu futuro, uma sociedade adiada.
Deputado municipal eleito pela CDU Barreiro
André Carmo
01.03.2023 - 09:15
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