opinião
A importância dos Pareceres Técnicos para a Consolidação da Decisão Política
O caso do Novo Aeroporto de Lisboa
Por Carlos Matias Ramos*
A importância dos Pareceres Técnicos para a Consolidação da Decisão Política: O caso do Novo Aeroporto de Lisboa
Autor: Carlos Matias Ramos*
Janeiro de 2024
Ser cidadão fiel é uma virtude,
e a participação na vida política é uma obrigação moral.
Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 2013
O Estado e a Administração Pública. Desde o final do século XX que há a preocupação de reconhecer que o Estado não pode ser apenas um centro de eficiência e de eficácia, devendo, por isso, olhar para a realidade pública como algo que é determinado pela intersecção das necessidades e vontades de diferentes stakeholders, onde se incluem não apenas o poder político ou administrativo, mas também os cidadãos, as famílias e as empresas, entre outros. Salienta-se o seu papel de regulador, o que pressupõe um Estado forte baseado numa Administração Pública não politicamente capturada.
Como refere Miguel Poiares Maduro (Expresso de 12 de fevereiro de 2021), “Uma Administração politicamente capturada acaba apenas a validar as opções que intuitivamente correspondem ao interesse do poder político do momento”.
Um Estado forte pressupõe uma Administração Pública autónoma, competente e prestigiada, que garanta apoio rigoroso e independente à governação e que, entre outras funções, garanta e valide a qualidade e independência dos serviços prestados por entidades privadas que, pela sua natureza, estão fora do domínio da responsabilização por atos praticados em nome do Estado. Uma Administração Pública que esteja indubitavelmente ao serviço do Estado e dos cidadãos pressupõe quadros competentes e determinados, valorizados pelo mérito.
Este aspeto é tanto mais importante quanto as decisões políticas consolidadas em pareceres técnicos devem ser sempre sustentadas em planos estratégicos elaborados com base em avaliações rigorosas e isentas, que incorporem análises técnicas, financeiras, de ordenamento do território, do ambiente, do desenvolvimento económico e social. Planos Nacionais Estratégicos de longo prazo, definidos numa lógica de continuidade na prossecução do interesse público, que garantam uma política de Estado e não de governos.
Caminhar em frente exige saber para onde se quer ir. Um Plano deve ser uma “bússola” orientadora com capacidade agregadora e de mobilização coletivas.
Decisões avulsas, tomadas num dado período político e anuladas no período seguinte, criam insegurança e dúvidas, conduzindo a um ambiente de desconfiança das empresas, dos cidadãos e de potenciais investidores.
Temos vindo a assistir nos últimos anos à desvalorização da Administração Pública nos processos de decisão, substituindo-a por comissões ad-hoc e por contratações externas e delegação das competências do Estado, através de concessões público-privadas (PPP), sendo a elaboração dos contratos para essas delegações elaborados em gabinetes de ministros ou de secretários de Estado, muitas vezes com o apoio exclusivo de gabinetes externos de advogados e de empresas de consultoria, sem o devido enquadramento e controle por parte de agentes do Estado.
Gabinetes ministeriais, com composição volátil, em que os seus membros, em muitas situações, desconhecem o historial disponível nas instituições públicas sobre as matérias para as quais são feitas contratações externas de prestação de serviços para apoio à decisão. Apoio à decisão que, em muitas situações, não incorpora a intervenção dessas instituições públicas existentes na estrutura orgânica dos diferentes ministérios. Quando terminam a sua função, os gabinetes e empresas de consultoria levam consigo o conhecimento, entretanto adquirido, sem a garantia da sua transmissão para os organismos do Estado. Muitas vezes fica apenas o relatório.
Por outro lado, os gabinetes de consultores externos, contratados pelo Governo num determinado momento e para uma dada situação, no momento seguinte podem apoiar, na sua atividade profissional, empresas privadas que negoceiam com o Governo.
Embora se compreenda que é muitas vezes necessário reforçar o conhecimento e colmatar insuficiências da Administração do Estado, recorrendo a contratações externas para identificação e validação de questões estratégicas, tem-se, no entanto, constatado que, em decisões que envolvem grandes infraestruturas ou contratos de concessão, são os gabinetes externos que, em determinadas situações, as condicionam e determinam.
Outra forma de intervenção dos Governos baseia-se na frequente nomeação de Comissões. A constituição destes instrumentos de apoio à decisão, datados no tempo, correspondendo em muitas situações ao desconhecimento público do trabalho que produzem, alimentam a ideia, muitas vezes potencialmente injusta, de que são criadas por tudo e por nada. Este procedimento pode ser interpretado como resultante da desconfiança nas instituições públicas que integram a orgânica do Estado.
Quando ocorre um problema, uma dificuldade política do momento, em resultado de uma contestação, seja na Assembleia da República, de dirigentes de partidos, ou de notícias na comunicação social, tem sido prática a nomeação de uma comissão ad-hoc,
um grupo de trabalho, ou uma unidade técnica. Esta prática é retratada no aforismo “quando queres acabar com uma questão cria uma comissão”.
Não sabemos exatamente quantas comissões foram nomeadas pelos governos recentes. O jornal Público, de 5 de janeiro de 2023, noticia que entre comissões, grupos de trabalho e task forces, havia 206 estruturas!
A nomeação de Comissões, sem o devido enquadramento, cuja missão se esgota com a elaboração do respetivo relatório, enfraquecem o papel do Estado, desvalorizando as suas instituições . Cumulativamente, os seus estudos e conclusões, que reconhecidamente são, em várias situações de elevada qualidade, podem perder-se no tempo, se não existirem estruturas que enquadrem e garantam a execução e continuidade das soluções que propõem.
Só uma lógica de continuidade e de estabilidade, sustentada em soluções enquadradas em Planos Estratégicos Nacionais de longo prazo, é que se pode garantir racionalidade e eficácia em todo o processo de apoio à decisão.
Quando os resultados dos estudos desenvolvidos por essas comissões são desfavoráveis a certos interesses privados surgem as contestações. O exemplo recente tem a ver com algumas “análises”, identificáveis na sua origem, do Relatório da Comissão Técnica Independente (CTI), divulgado no dia 5 de dezembro de 2013, intitulado “Avaliação de Opções Estratégicas para o Aumento da Capacidade Aeroportuária da Região de Lisboa”.
São, em muitos casos, “análises” e opiniões baseadas em argumentos de ocasião, distorcendo deliberadamente o conteúdo e os fundamentos dos resultados apresentados nesse relatório, com objetivos facilmente identificáveis. Em certos casos é nítida a utilização de afirmações falsas, apresentadas como sendo resultantes de análises sérias do conteúdo do relatório. Utilizam o recurso aos meios de comunicação social, aproveitando o princípio de que “uma mentira repetida se transformará em verdade”, e assim poderem condicionar a opinião pública.
Como exemplo referem-se as afirmações de certos analistas sobre o desempenho de membros da Comissão Técnica Independente (CTI). Afirmações passíveis de ser consideradas como tentativas de assassínio de caráter, utilizando o ataque pessoal, com recurso a argumentos falsos e inqualificáveis, com o propósito único de pôr em causa a sua honestidade intelectual e independência.
Não analisam e comentam o conteúdo do Relatório, o que seria natural e exigível. Recorrem, isso sim, a ataques pessoais, na perspetiva que desta forma podem conseguir os seus intentos de desvalorização dos resultados, apenas porque são desfavoráveis aos seus objetivos e interesses, ou porque têm a “sua ideia” preconcebida sem, no entanto, a fundamentarem com estudos e dados concretos.
A verdade não serve ideologias, cores políticas ou interesses privados à revelia do interesse público, e pode tardar, mas acabará por ser reconhecida.
O Planeamento Estratégico e a definição criteriosa dos investimentos públicos, constituem uma parcela importante na condução do ciclo de crescimento da economia do país. Efetivamente, os desafios do país impõem que se assuma o planeamento, em todas as suas dimensões, como peça fundamental na criação de um modelo de desenvolvimento sustentável que se ajuste às necessidades de uma sociedade cada vez mais exigente, num mundo globalizado e altamente competitivo, em que as infraestruturas de transporte modernas e eficazes são determinantes.
Compete ao Estado promover os diversos planos estratégicos para o desenvolvimento do País, planos que garantam uma política de Estado e não de governos, minimizando os riscos da sua frequente alteração em função de ciclos eleitorais. As decisões sobre investimentos públicos devem resultar desses planos e ser suportadas por uma análise custo-benefício que contemple várias áreas, designadamente a técnica, económica, financeira, ambiental, ordenamento do território, competitividade e desenvolvimento económico e social.
Sem um planeamento adequado e/ou sem a coordenação dos investimentos públicos e privados em infraestruturas, ampliam se os riscos de aprofundamento de desigualdades regionais. A decisão casuística conduz inevitavelmente à dúvida, à contestação e ao risco de realização de investimentos sem o devido retorno.
Quando a decisão de investir é relegada apenas às forças de mercado, a tendência natural da expansão do investimento é a sua localização em zonas do país com espaços com ampla densidade populacional, esquecendo as restantes, com agravamento das desigualdades territoriais.
O Programa Nacional de Investimentos 2030 (PNI 2030) tem como objetivo “ser o instrumento de planeamento do próximo ciclo de investimentos estratégicos e estruturantes de âmbito nacional, para fazer face às necessidades e desafios da próxima década e décadas vindouras”. Na componente aeroportuária estabelece apenas objetivos gerais: a) adequação progressiva da capacidade na rede aeroportuária à evolução da procura 2021-2030; b) requalificação e melhoria de eficiência e níveis de serviço na rede aeroportuária. Onde está a remissão destes objetivos para o Plano Estratégico Nacional Aeroportuário?
Outro aspeto determinante, que tem afetado a função do Estado e a sua credibilidade, tem a ver com o facto de certas decisões, tomadas num dado período político, serem anuladas nos períodos seguintes. Este comportamento provoca falta de confiança e induz graves custos para o Estado (com as conhecidas litigâncias e indeminizações) e para as empresas que apostam na resposta a concursos e mais concursos, que posteriormente são anulados. Resposta que assume custos elevados para as empresas.
No caso específico das infraestruturas no setor dos Transportes, apresentam-se exemplos de decisões e anúncios de investimento público que não obedeceram a qualquer plano de desenvolvimento económico e social do país.
Uma estratégia para os transportes, inseridos numa lógica holística, baseada em Planos Específicos, constitui um desafio, uma oportunidade e uma necessidade. Não se compadece com decisões casuísticas.
Apesar destes princípios sobre a importância das infraestruturas de transporte, tem-se assistido a “decisões” tomadas num dado Governo que são alteradas no seguinte, conduzindo a situações sem fundamento e sem fim à vista.
São vários os exemplos em que as decisões sobre determinadas infraestruturas de transportes são anunciadas com bastante publicidade e depois desaparecem como se nada tivesse acontecido. Noutras situações é referido, no próprio anúncio, que serão desenvolvidos estudos posteriores para as justificar e implementar.
Procedimentos com sistemáticos anúncios sem continuidade, ou situações de “pára-arranca”, conduzem à descrença do mercado e das populações e a custos elevados para o país. O país e os investidores podem confiar em decisões desta natureza?
Apresentam-se algumas dessas “decisões” meramente políticas, não sustentadas numa cuidada análise técnica que inclua uma análise de riscos. Esta prática traduz-se, nalguns casos, no “caminhar em frente, às cegas e depois se verá”. Exemplos.
Na ferrovia. Na Cimeira Portugal-Espanha, realizada em 2003 na Figueira da Foz, foi “decidida” e bastante publicitada a construção, em TGV, de quatro linhas ferroviárias da rede Ibérica. Construção negociada com o Governo de Espanha. Considerando a ligação Porto-Lisboa passariam a ser cinco.
Como foram sustentadas técnica e financeiramente estas decisões? Quais os Planos que as suportaram? Nos governos seguintes, à exceção da situação em curso da linha de AV Lisboa-Porto, as restantes foram sendo sucessivamente “esquecidas”.
Nos portos. Sem um projeto consolidado, uma avaliação técnica, económica e financeira, o governo anunciou, no primeiro trimestre de 2013, a construção de um terminal de contentores na Trafaria, que enquadrou como fazendo parte das obras do chamado "Plano de Reestruturação do Porto de Lisboa”.
Tratou-se de uma decisão meramente política, de um impulso governamental, sem a devida fundamentação, desinserida de uma estratégia nacional de aproveitamento integral das infraestruturas portuárias nacionais.
Decisão suportada em diversas afirmações do governo, entre as quais que seria um investimento totalmente privado com valores entre 600 e 800 milhões de euros e que o LNEC estava a elaborar o estudo . Decide-se e depois elaboram-se os estudos? Os tais investidores nunca foram identificados. No primeiro trimestre de 2014 o governo, face a diversas questões levantadas, mudou de ideias. A localização do terminal passou a ser no Barreiro , , .
Epílogo. Na versão do Orçamento de Estado de 2016, o projeto do terminal de contentores do Barreiro foi substituído pela “coordenação estratégica entre os portos de Lisboa e Setúbal” , solução preconizada pela Ordem dos Engenheiros em várias situações, sempre com a preocupação construtiva de garantir soluções integradas, credíveis para o país e de perceber o porquê da “decisão” do Governo em 2013 .
O país e os investidores podem confiar em decisões de governos desta natureza?
Nos aeroportos. Os aeroportos ocupam um lugar central nas redes de transporte, conectando as regiões à economia mundial, possibilitando o fluxo de pessoas, bens, serviços e informações. Portugal é beneficiado pela sua posição Atlântica, que gera oportunidades de diversificação de mercados, o que evidencia a grande importância da conectividade aérea para a economia portuguesa. “Os estudos sobre a economia portuguesa mostram qua a conectividade aérea é uma das variáveis que mais condicionam o desenvolvimento económico”, salientando que “precisamos muito e há muito tempo de um novo aeroporto” (Ministro da Economia, Expresso, 12/01/2204).
O Relatório Final da Comissão Técnica Independente (CTI) salienta que o crescimento robusto da nossa economia requer uma Área Metropolitana de Lisboa competitiva, constituindo o novo aeroporto internacional na região de Lisboa um instrumento importante para esse crescimento.
Apesar desta constatação, tem-se assistido, na área aeroportuária, a um historial de resoluções e indecisões sobre a localização do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL).
Em 2007, na sequência de um estudo solicitado ao LNEC, que elaborou o correspondente relatório, datado de 10 de janeiro de 2008, foi promulgada a Resolução do Conselho de Ministros (Resolução nº 85/2008 de 26 de maio) que “aprovou preliminarmente a localização do NAL na zona do Campo de Tiro de Alcochete (CTA), sem prejuízo das conclusões da avaliação ambiental estratégica (AAE) e das consultas públicas e institucionais que o Governo entendeu necessárias para a tomada de decisão final”. Resolução não revogada. A AAE foi realizada e aprovada em dezembro de 2010.
Passaram quase 16 anos desde esta Resolução do Conselho de Ministros sobre a localização do NAL. A história de todo este processo até aos dias de hoje, sem fim à vista, é reveladora do que têm sido as “decisões” governamentais sobre a localização do NAL.
Referem-se, a propósito, os preâmbulos das várias decisões governamentais, desde 1969 até 2012, que evidenciam a necessidade de construir um novo aeroporto internacional na região de Lisboa em substituição do da Portela por, passo a citar: a) se encontrar praticamente dentro da cidade; b) não se vislumbrar qualquer hipótese de expansão face à evolução do tráfego aéreo.
São, desde 1969, decisões prenunciadoras da situação de caos em que vive o AHD (Aeroporto Humberto Delgado - Portela), penalizado simultaneamente nos fatores escala e competitividade e nas suas conhecidas limitações de capacidade, resultantes das deficiências inultrapassáveis da sua infraestrutura operacional - exiguidade da área disponível na zona de implantação.
Salienta-se que o AHD é o último grande aeroporto europeu com características Hub, localizado no coração de uma cidade capital, com os riscos para a segurança de pessoas e bens, que decorrem do sistemático sobrevoo de zonas urbanas a baixa altitude, com as consequências conhecidas para a saúde e bem-estar da população, causadas, quer pelo ruído, quer pelos níveis significativos de poluentes que os aviões emitem.
Estamos em 2024, ou seja, cerca de 55 anos após a primeira decisão. Quais as consequências destas indecisões? Citam-se apenas algumas delas, baseadas em declarações sobre as implicações que todos conhecemos em resultado da manutenção do Aeroporto Humberto Delgado:
1. A TAP afirmou, face à situação de saturação da Portela, que a empresa perde 1,8 milhões de passageiros por ano.
2. A Confederação do Turismo de Portugal (CTP) declarou, em 14 de julho de 2023, que Portugal perdeu desde janeiro, ou seja, em seis meses, quase 650 M €;
3. Um estudo apresentado pela associação ambientalista ZERO concluiu que o ruído no Aeroporto Humberto Delgado (AHD) custa, em média, mais de 3,5 milhões de euros por dia. Este valor contempla os impactos totais na saúde e no ambiente, a produtividade no trabalho e no mercado imobiliário nos concelhos de Lisboa, Loures e Almada. No Expresso de 5 de janeiro de 2024 é salientado que o ruído gera desvalorizações de 10 a 15% nos imóveis.
4. A AirHelp, num estudo apresentado em julho de 2023, definiu o AHD como o segundo aeroporto mais caótico da Europa, com 51% de atrasos e cancelamentos só no último mês. Nesta caracterização considerou os atrasos superiores a 15 minutos.
Os números falam por si e os prejuízos para o país são evidentes. A situação atual não foi resolvida por desconhecimento da estimativa para a data de saturação do AHD. Esse conhecimento está bem demonstrado nos resultados do estudo realizado pelo Eurocontrol, para a NAV, com relatório apresentado em 20 de dezembro de 2016.
De acordo com este estudo, o AHD saturará em 2030. Conclusão sustentada numa capacidade máxima de 48 movimentos/hora, valor utilizado no modelo utilizado pelo Eurocontrol, no pressuposto de que seriam executadas as obras previstas, mas não realizadas (atualmente a capacidade máxima real é de 40 movimentos/hora).
Não foi, portanto, por desconhecimento desta situação por parte da ANA, nem por incapacidade de utilização do conhecimento disponível, que o projeto do NAL na AML não avançou. Não avançou, porque a isso se tem oposto a Concessionária, recorrendo às deficiências do “Contrato de Concessão de Serviço Público Aeroportuário nos Aeroportos situados em Portugal Continental e na Região Autónoma dos Açores”, assinado em 14 de dezembro de 2012.
Decisões contratuais sobre investimentos públicos têm tido, em vários casos, consequências gravosas para o Estado, condicionando-o. É o caso de certos contratos de concessão, sustentados em Parcerias Público Privadas (PPP), e em sucessivas negociações posteriores.
Contratos que o Estado negoceia para delegação de competências ou por necessidade. Não está em causa o modelo das PPPs utilizado com sucesso em muitos países e nalguns casos em Portugal que, devidamente geridos, podem constituir um fator determinante para o desenvolvimento do país. O problema tem surgido em resultado de limitações contratuais, ou de renegociações, que se revelam como maus contratos para o Estado.
Apresentam-se dois exemplos. O processo que conduziu à concessão do projeto da ponte Vasco da Gama e o Contrato de Concessão do Serviço Público Aeroportuário nos Aeroportos situados em Portugal Continental e na Região Autónoma dos Açores.
Em relação ao projeto da ponte Vasco da Gama, refere-se o artigo da autoria do Doutor Joaquim Miranda Sarmento, presidente do Grupo Parlamentar do PSD, apresentado no Jornal Eco de 12 de março 2018. Este projeto foi na altura (1994) uma novidade em Portugal: uma concessão privada, em regime de Parceria Público Privada (PPP), assente em “project finance”.
Sem entrar em pormenores, deslocados do âmbito deste texto, apresentados no referido artigo, o autor conclui que, após várias renegociações, este projeto, com um investimento total inicial de mil M€, deveria ter sido suportado pelo setor público em apenas 50 M€. Acabou, no entanto, por ter um apoio financeiro adicional, ao longo do período de concessão que, atualizado a 1994, representa 500 M€, ou seja, 50% do investimento total inicial! Valores que, salienta-se, tiveram em conta apenas o período até 2018.
No contrato inicial a Concessionária (Lusoponte) tinha apenas como receitas as portagens cobradas nas duas pontes (Vasco da Gama e 25 de Abril), não prevendo qualquer comparticipação financeira por parte do Estado, quer na fase de construção, quer na fase de operação.
O autor do artigo concluiu que “o projeto da Lusoponte acabou por ser um mau contrato para o Estado. Situação que não decorreu do contrato inicial, mas sim das sucessivas renegociações entre 1996 e 2001”.
Em relação ao Contrato de Concessão de Serviço Público Aeroportuário nos Aeroportos Situados em Portugal Continental e na Região Autónoma dos Açores, celebrado entre o Estado Português e a ANA – Aeroportos Portugal, S.A., em 14 de dezembro de 2012, salienta-se que, anteriormente à assinatura, foi promulgada a Resolução do Conselho de Ministros nº 94-A/2012, de 8 de novembro, que criou a Comissão Especial de Acompanhamento da Privatização da ANA – Aeroportos de Portugal, S.A.
Teve por missão “elaborar um relatório acerca da regularidade, da imparcialidade e da transparência da operação de privatização em curso”. A missão desta Comissão estava à partida totalmente desrespeitada nos seus objetivos. Efetivamente a assinatura do contrato, resultante da “privatização em curso” (Contrato de Concessão), ocorreu em 14 de dezembro de 2012, ou seja, cerca de um mês depois.
A Comissão Especial de Acompanhamento produziu, no entanto, um relatório, datado de 22 de janeiro de 2014, no qual salientou as fragilidades do Contrato de Concessão, destacando "a menor consideração que foi dada ao previsto Novo Aeroporto de Lisboa (…), quer no que respeita ao valor em jogo (…), quer no que toca à posição do Estado enquanto concedente".
Através do despacho n.º 2989/2018 é nomeada a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, criando uma Comissão para a Renegociação do Contrato de Concessão de Serviço Público Aeroportuário. Não se conhecem os resultados desta Comissão.
Em relação ao Contrato de Concessão destaca-se o conteúdo do Relatório Ambiental da Comissão Técnica Independente (CTI), apresentado em 5 de dezembro p.p., que contém um parecer solicitado à sociedade de advogados PLMJ. O Relatório levanta diversas questões sobre as fragilidades do Contrato, com consequências para o Concedente/Estado. Salienta que o Contrato tem uma importância fulcral na decisão de aumento da capacidade aeroportuária da Região de Lisboa.
Da análise de vários documentos parece poder inferir-se que o Caderno de Encargos da privatização da ANA, S.A., que assenta numa Resolução do Conselho de Ministros (RCM) 94-A/2012, privilegiou o encaixe financeiro em detrimento do interesse estratégico da empresa para Portugal.
O relatório do Tribunal de Contas, publicitado em 5 de janeiro de 2024, é bastante explícito na denúncia da forma como foi preparada a privatização da ANA, S.A., tendo-a considerado como sendo um processo desastroso para o interesse nacional, do qual resultaram elevados prejuízos e custos significativos para o erário público, salientando o desequilíbrio do contrato em favor do concessionário.
Os riscos sempre do lado do Estado.
A fragilidade do Estado proporciona condições para que, em resultado das negociações de contratos de concessões a privados, em alguns casos possam ser blindados de forma a dificultar o cumprimento da obrigação dos governos de, na prossecução do interesse público, terem a liberdade de escolher as melhores soluções para o país.
Na sequência da assinatura do Contrato de Concessão foi assinado, em 15 de fevereiro de 2017, o Memorando de Entendimento, suportado em alguns considerandos não verdadeiros facilmente identificáveis. Memorando que possibilitou à Concessionária a apresentação da proposta da solução dual, Portela+Montijo, não prevista no Contrato de Concessão. A renegociação feita a favor da Concessionária.
De acordo com pareceres jurídicos surge a dúvida. Este Memorando tem valor jurídico/contratual, ou é apenas um "acordo de intenções"?
A solução dual Portela+Montijo, insistentemente defendida pela ANA, praticamente desde a assinatura do Contrato de Concessão, com recurso inclusive a declarações não verdadeiras por parte do seu Presidente , é uma opção desadequada, porque debilmente fundamentada e desprovida de visão estratégica. É reveladora de insensibilidade face aos riscos que representa para a segurança e a saúde das populações que iria afetar. A título indicativo refere-se que o EIA da solução Montijo impõe 159 medidas de mitigação!!!
Uma solução aeroportuária dual não deve ser prosseguida sem argumentos sólidos de interesse nacional e não apenas porque tal coincide com uma vantagem comercial para o concessionário. Pode considerar-se como integrando a perspetiva de a concessionária não querer deixar de explorar, até ao limite, o Aeroporto Humberto Delgado (AHD), sua principal fonte de rendimento.
Trata-se inclusive de uma solução à revelia de decisões de diversos governos, desde 1969 até 2012, que estabeleceram como objetivo fundamental a necessidade de retirar o aeroporto do interior da cidade de Lisboa. A solução Portela+Montijo eternizaria a manutenção do aeroporto incrustado no interior da cidade, inviabilizando este objetivo.
Salienta-se que, de acordo com dados da Agência Europeia do Ambiente (2020), Lisboa é a segunda pior capital europeia em termos de exposição ao ruído do tráfego aéreo.
As obras e o aumento de capacidade do AHD, ao introduzirem mais tráfego aéreo agravariam a situação em Lisboa e zonas limítrofes. Ao “espremerem” o AHD seriam aumentados os riscos de poluição e eventual catástrofe. Piorariam a situação de ruído, poluição e saúde pública não só em Lisboa, afetando igualmente populações de diversos concelhos (Montijo, Barreiro, Moita, Seixal, etc.).
Foi feito o EIA desta solução dual?
Por outro lado, a solução Portela+Montijo desconsiderou, ignorando-os, os relatórios elaborados pela ANA antes da assinatura do Contrato de Concessão, como foi o caso do relatório, datado de 2007, que contém a análise dos vários cenários publicamente referidos como sendo alternativas ao NAL, em particular, a solução em causa .
Este relatório conclui o seguinte: “Considera-se desaconselhável a localização Montijo para implantação de um aeroporto complementar à Portela, tendo em conta as várias vertentes em que foi analisada de que se destacam a complexidade do espaço aéreo, as condicionantes físicas do local, os impactes ambientais, os volumosos investimentos e os custos operacionais elevados”.
O que se alterou, desde a elaboração deste relatório da ANA, de 2007, para que a Concessionário apresentasse, de forma insistente, a solução Portela+Montijo, ao ponto de o seu presidente afirmar que, ou era aceite esta solução, ou que não haveria disponibilidade financeira por parte da empresa para investir noutra, em particular em Alcochete.
No mesmo sentido do relatório da ANA refere-se igualmente um parecer solicitado pelo Ministério da Economia, em 2012, à Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) sobre a viabilidade da utilização de uma base aérea militar para a adaptar à aviação civil (no âmbito da solução dual). Em resposta a esta solicitação a IATA, que representa cerca de 320 companhias aéreas mundiais, no seu parecer apela ao executivo, para que "não se distraia com soluções de curto prazo que não vão ter o retorno previsto”.
O parecer desaconselhou a opção tomada pelo governo quando decidiu deixar cair o novo aeroporto em Alcochete e procurar uma base militar. O governo “rasgou” este parecer que solicitou.
Em complemento destaca-se que nenhum HUB Europeu optou por aumentar a sua capacidade aeroportuária através de uma solução dual.
O Contrato de Concessão foi considerado pelo Ministro das Infraestruturas e da Habitação, em 13 de janeiro de 2020 e passo a citar: “foi a privatização mais danosa para o interesse público” (Expresso, 18 de janeiro de 2020). Salientou ainda: “Temos de parar com boicotar o novo aeroporto. O atraso está a fazer o Estado perder centenas de milhões de Euros todos os dias”.
O então Secretário de Estado das Infraestruturas, Guilherme d´Oliveira Martins afirmou, na 3.ª Conferência Internacional ATM (Air Traffic Management), organizada pela Associação Portuguesa dos Controladores de Tráfego Aéreo (LUSA, 16 novembro 2018), o seguinte: “A ANA, que é uma empresa privada, tem, no âmbito do Contrato de Concessão, instrumentos à sua disposição fortes e o Estado está numa posição diferente, como concedente. Isto tem atrasado as negociações em função da posição que a ANA tem, na sequência da privatização, com contrato de concessão, que vem atribuir-lhe muitas vantagens”.
O relatório da auditoria feita pelo Tribunal de Contas e publicado em 5 de janeiro de 2024, corrobora estas afirmações ao concluir que "face ao regime legal aplicável e aos contratos de concessão de serviço público aeroportuário celebrados com o Estado português, a privatização da ANA não salvaguardou o interesse público, por incumprimento dos seus objetivos”. Este aspeto é igualmente referido no Relatório Ambiental da CTI, de dezembro de 2023, ao salientar que os termos contratuais estabelecidos no Contrato de Concessão têm “diversos mecanismos que suportam, por vezes de forma materialmente densa, o direito de opção da Concessionária no sentido de lhe proporcionar várias vias de o exercer ou não”.
Os riscos contratuais com vantagens para a Concessionária.
Perante os condicionamentos inerentes à forma desequilibrada como foi redigido este Contrato, com vantagens para a Concessionária, o Relatório Ambiental da CTI recomenda que a renegociação dos direitos e obrigações das Partes se processe no sentido de inscrever um maior equilíbrio e harmonização dos mesmos.
Do exposto ressalta que a forma como foi redigido o Contrato de Concessão introduziu riscos significativos para a escolha da opção técnica e economicamente mais favorável. A sua renegociação assume, por isso, uma importância fulcral na decisão sobre a solução mais favorável para garantir o indispensável aumento da capacidade aeroportuária da Região de Lisboa. Renegociação que, ao abrigo do princípio da prossecução do interesse público, possibilite escolher a melhor opção para o país.
Face a todo este processo de decisão sobre a localização do NAL, cito uma afirmação do Professor Augusto Mateus num colóquio promovido pela Assembleia da República. “O pior dos erros é fazermos, na segunda metade do século XXI, o aeroporto que deveríamos ter feito na penúltima década do século XX. Isto não é a propósito de uma Portela maior, não é a propósito de a Portela ter as dificuldades que tem, é a propósito de estratégia, é a propósito de criar emprego e de pôr Portugal a crescer”.
Afirmação premonitória dos erros que têm sido cometidos e que conduziram à situação atual, com enormes prejuízos para o país. Mais grave ainda é que o clausulado do Contrato de Concessão está a condicionar o governo, responsável único pelo exercício e gestão do poder político, na escolha da melhor solução para a localização do NAL.
Face aos elementos disponíveis, a localização do NAL no CTA, com estudos desde 2008, é a solução que se apresenta como mais favorável, porque:
1) Tem racionalidade estratégica, técnica, económica, financeira, ambiental, de ordenamento do território.
2) Não compromete o futuro, possibilitando um desenvolvimento flexível, ajustável à evolução da procura e às incertezas devidas a contingências dificilmente previsíveis.
3) Permite a construção de uma cidade aeroportuária.
4) Ajusta-se aos interesses do País - Pôr Portugal a crescer.
5) Dá resposta às exigências de um aeroporto que possa funcionar como Hub internacional.
6) É a única das soluções analisadas pela CTI devidamente estudada ao pormenor.
7) Tem, desde 2010, o projeto pronto para concurso. Projeto desenvolvido pela ANA/NAER com a participação de consultores internacionais (ARUP, HOCK, Aviation Solutions, Eurocontrol, com o acompanhamento da NAV).
8) Não apresenta fatores limitativos da capacidade do sistema de pistas e das operações do tráfego aéreo.
9) Tem DIA aprovada e válida até 9 de dezembro de 2020. A caducidade de uma DIA é uma circunstância jurídica que não elimina a substância dessa declaração. Nada foi alterado no CTA, desde essa data, do ponto de vista ambiental.
10) É autofinanciável e lucrativa (Estudos do ISEG, 2008; BPI, 2010; CTI, 2023).
11) Permite o desenvolvimento do projeto baseado no “ir fazendo” em vez de “fazer tudo de uma vez”.
12) Permite mitigar as disparidades entre as duas grandes unidades sub-regionais, a Grande Lisboa e a Península de Setúbal
13) Localiza-se em terrenos do domínio público.
O Relatório Ambiental da CTI, de 5 de dezembro de 2023, conclui que, do ponto de vista estratégico, a solução com mais vantagem para um Hub intercontinental é a que considera, numa fase de transição, o funcionamento em solução dual, baseada no AHD operando em conjunto com o Novo Aeroporto de Lisboa no CTA (com uma pista), até à abertura deste como aeroporto único com o mínimo de duas pistas.
O que falta para a decisão? Mais Comissões e relatórios? Mais estudos elaborados no âmbito partidário? Não houve consenso pelos partidos maioritários na AR na necessidade de realização da AAE e na aprovação da Comissão Técnica Independente?
Por razões que a razão conhece, retratadas em vários documentos e, em particular, nos relatórios do Tribunal de Contas e da CTI, tudo parece indicar que a decisão sobre a solução mais favorável para garantir o indispensável aumento da capacidade aeroportuária da Região de Lisboa, tem de se submeter à renegociação do Contrata de Concessão. O primado do interesse nacional deve presidir a esta renegociação.
*Presidente do LNEC (2005-2010), Bastonário da Ordem dos Engenheiros (2010-2016)
1. Carlos Matias Ramos- Comissões Técnicas. E todas o tempo levou. Público, 15 de novembro de 2022.
2. Diário Económico de 27 de junho de 2013.
3. Carlos Matias Ramos – O Terminal do Barreiro. Expresso, 3 de janeiro de 2015
4. Carlos Matias Ramos – As decisões de investimento público. Expresso, 31 de janeiro de 2015
5. Carlos Matias Ramos - O Caso do Terminal de Contentores do Barreiro. Expresso, 14 de março de 2015
6. Governo retira terminal do Barreiro do plano de investimentos para 2016. Diário Económico, 23 de fevereiro de 2016
7. Engenheiros consideram Setúbal opção mais económica. Diário Económico, 23 de fevereiro de 2015
8. Carlos Matias Ramos - A solução Portela+Montijo. Das declarações à realidade dos factos. Público, 16 de julho de 2022
9. ANA-Aeroportos de Portugal, S.A. - Dossier Portela + Montijo. Publicado em 22de dezembro de 2007
24.01.2024 - 12:08
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