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Habitação no Barreiro: a “armadilha” da escala, impotência e falsas soluções
Por André Carmo>
Barreiro

Habitação no Barreiro: a “armadilha” da escala, impotência e falsas soluções<br>
Por André Carmo><br>
Barreiro A leitura do relatório municipal de habitação do Barreiro é reveladora dos desafios que o problema da habitação coloca aos municípios portugueses, sobretudo àqueles que se localizam, como é o caso do Barreiro, nas áreas de maior pressão especulativa, e da falta de soluções adequadas e consequentes.

Senão vejamos:

O número total de edifícios com necessidade de reparações é de 4 631, sendo a maior parte pequenas reparações. Quando olhamos para os dados do Programa Municipal de Incentivos + Reabilitação, relativamente ao qual a CDU sempre expressou grandes reservas, por nos parecer um instrumento inconsequente, verifica-se que foi justamente isso que sucedeu. Para cada um dos dois anos considerados (2022 e 2023) foram apresentadas 10 candidaturas, tendo sido apoiadas 6 candidaturas em 2022, e apenas 2 em 2023. Significa isto que, dos 4 631 edifícios com necessidade de reparações, este programa foi capaz de dar resposta a 8, ou seja, 0,17% do total de edifícios que necessitam de reparações. Trata-se, pois, de uma abordagem homeopática que ninguém pode considerar adequada para lidar com este problema. 0,17% é quase nada. Arredondado à unidade dá mesmo 0%. Portanto, é este o resultado do Programa Municipal de Incentivos + Reabilitação. Uma mão cheia de nada.

Depois, quando se abordam dados relativos ao valor médio mensal das rendas, ficam a nu os limites da análise estatística. Nenhum dos dados apresentados é falso. Não têm é grande utilidade para compreender a situação atual. Por um lado, estando nós em 2024 e tendo em conta que a dinâmica habitacional tem mudado de forma tão acelerada, recorrer a dados censitários de 2021 parece quase um anacronismo. Diz-nos pouco. Não teria sido melhor recorrer a um indicador mais substantivo? No dia 25 de junho, por exemplo, ficámos a saber que Portugal é o país da UE onde mais se agravou a inacessibilidade da habitação. Relacionando a evolução dos preços de venda das casas com a do rendimento disponível bruto per capita, a OCDE percebe que o desfasamento entre o preço das casas e os salários tem aumentado mais em Portugal do que em qualquer outro país da UE. Em 2023 (tendo 2015 como ano base) o índice ascendeu a 150,9, traduzindo um aumento de quase 51% neste diferencial. Significa que, desde 2015, o esforço das famílias para adquirir casa aumentou 51%. É obra! Mas revela também que informação de qualidade nos permite compreender melhor a realidade.

Depois, passamos para o ponto 2 – Habitação Municipal. Ficamos a saber que, na Estratégia Local de Habitação foram sinalizadas 737 famílias (cada uma delas correspondendo a um fogo) e que há um conjunto diversificado de soluções para cada uma delas. Contudo, registamos com preocupação que os 10 financiamentos aprovados no âmbito do PRR permitem dar resposta a 124, ou seja, apenas 16,8% do total de famílias sinalizadas terão uma solução. Acrescem mais 5 candidaturas que, se forem bem-sucedidas, permitirão dar resposta a mais 141 famílias, ou seja, 18,9% do total de famílias sinalizadas. Por outras palavras, no melhor cenário possível, será possível encontrar solução para 265 das 747 famílias sinalizadas, isto é, aproximadamente 35,5% do total. Ficarão por resolver pelo menos 64,5% das situações, sem que seja apontada qualquer perspetiva. É óbvio que para cada uma das 265 famílias que podem ver a sua situação habitacional resolvida será uma melhoria sem igual das suas condições de vida. Mas preocupa-nos (sobretudo depois de tanto alarido com o PRR que, qual varinha de condão, tudo iria resolver) que existam pelo menos 64,5% das famílias que continuarão sem resposta adequada. Trata-se – convenhamos – de uma muito expressiva maioria. Parece que o PRR funciona melhor como bazuca de marketing político do que como solução efetiva para o problema do acesso à habitação. De resto, o Conselho das Finanças Públicas tem alertado sistematicamente para taxas de execução do PRR que ficam aquém do esperado. A 30 de junho de 2026 logo se vê.

Por fim, aborda-se o já conhecido Programa de Arrendamento Acessível que estipula que a renda máxima para cada habitação deve ser pelo menos 20% abaixo dos valores de referência de arrendamento definidos no mercado. Trata-se de um programa mal desenhado pelo governo de maioria PS que, em vez de definir os custos do acesso à habitação em função do rendimento líquido disponível das famílias, como sugerido pela relatora especial das Nações Unidas para a habitação que visitou o nosso país, faz um programa à medida de um mercado sobreaquecido, ultra-inflacionado e refém das dinâmicas especulativas que, por opção política, não se combatem. Uma falsa solução. Um logro. Entretanto, houve alterações legislativas em fevereiro de 2024 e haverá alterações ao Regulamento Municipal de Arrendamento Acessível. Ficamos a aguardar.

Em suma, este relatório municipal de habitação não passa de mais uma demonstração de impotência. Porque não é à escala municipal que podemos construir soluções consequentes para a questão da habitação nem é a esta escala que, mesmo existindo vontade, seremos capazes de contrariar as grandes dinâmicas de transformação do sector da habitação que levam a que esta se tenha tornado cada vez mais inacessível para tantas famílias da classe trabalhadora, sobretudo para as gerações mais jovens. Ficaria muito bem a este executivo PS Barreiro assumir com verdade o problema e juntar-se aos que lutam por uma política de habitação consequente, da responsabilidade do governo, que combata a especulação e assuma que todos têm direito a uma habitação digna a um preço justo.

E porque o PS falhou em toda a linha quando teve uma maioria na mão – recorde-se que o agora presidente do Conselho da Europa nos prometeu que, nos 50 anos do 25 de Abril, as situações de carência habitacional identificadas no levantamento nacional de necessidades de realojamento habitacional de 2018 estariam erradicadas e que até 2025 o parque habitacional público iria subir de 2 para 5%, e que a única medida verdadeiramente disruptiva nessa tímida manta de retalhos que é o Programa Mais Habitação (refiro-me ao arrendamento coercivo de fogos devolutos) não passou do PS a fingir ser de esquerda –, estamos hoje mais expostos às políticas de retrocesso promovidas pelo governo ultraliberal liderado pelo PSD no domínio da habitação.

Por isso, da reintrodução do Regime dos Vistos Gold, à redução generalizada dos impostos associados ao Regime dos Residentes não habituais, passando pela revogação de instrumentos de regulação do Alojamento Local e pela revitalização das PPP para aumentar a oferta habitacional – no país que tem o maior rácio de número de fogos por família da Europa e onde existem mais de 700 000 alojamentos vazios –, para além da revisão da lei dos solos, o atual governo, com base numa tão simplista quanto falaciosa tese de que o problema resulta da “falta de casas”, racionalidade económica de mangas-de-alpaca, só quer tornar o investimento imobiliário mais atrativo para os especuladores. E a especulação combate-se com medidas de controle da entrada de capitais especulativos no imobiliário. “Paraísos comunistas” como o Canadá, a Nova Zelândia, Singapura ou a cidade de Viena, mostram como uma boa dose de intervencionismo, regulação e construção pública podem contribuir para resolver o problema de acesso à habitação digna.

O PS Barreiro entende que o desenvolvimento do Barreiro pode, simultaneamente, ancorar-se no crescimento do complexo financeiro-imobiliário-turístico e cumprir o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. Não é possível conciliar uma coisa e o seu contrário. Não é possível promover investimentos de 130 milhões de euros com apartamentos a mais de meio milhão sem que isso se reflita na escalada dos preços no tecido urbano envolvente. E sem que isso faça de um executivo que promove estes investimentos, agente ativo da especulação imobiliária. Alaing Gross, CEO da Solid Sentinel, explica melhor: «As pessoas achavam que eu estava maluco quando resolvi apostar num projeto desta natureza no Barreiro [referindo-se ao NOOBA]. Mas segui a mesma estratégia quando, em 2016, resolvi avançar para um dos nossos edifícios que temos em Lisboa, no Desterro. Eu espantava-me como é que era possível existir preconceito imobiliário com uma zona que está a cinco minutos da Rua Augusta, da Baixa nobre de Lisboa... Também nessa altura as pessoas diziam que eu estava maluco... Hoje comprar casa ali é caríssimo... E senti o mesmo aqui». Pois é, quando for ainda mais caríssimo comprar ou arrendar casa no Barreiro, convém não esquecer que a especulação imobiliária contou com a complacência do executivo PS.

Só um Estado forte, soberano e com capacidade planificadora pode contrariar a especulação, construir soluções para o problema da habitação e, assim, cumprir o artigo 65.º da Constituição. E soluções há muitas, como tem defendido a CDU. Afinal, porque é que não podemos usar os lucros obscenos da banca para suportar as subidas das taxas de juro? E para que serve ter uma Caixa Geral de Depósitos se ela funciona de modo igual à banca privada? Porque não investimos no alargamento do parque habitacional público, no regime de renda apoiada? Porque não revogamos o novo regime de arrendamento urbano? Porque não impedimos os despejos na sequência de penhoras ou execução de hipotecas? Porque não criamos programas cooperativos com vista à recuperação e à reabilitação urbanas? Porque não promovemos o uso público de fogos devolutos que sejam detidos por fundos de investimento imobiliário, empresas e grandes proprietários? Porque não limitamos, onde existam carências, a mobilização de habitações para alojamento local? A resposta é simples: porque sucessivos governos liderados por PS e PSD não o quiseram.

André Carmo
Deputado Municipal eleito pela CDU Barreiro

04.07.2024 - 00:23

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