opinião
“Com esta idade não se vai lembrar de nada… ”
Por Ivo Pereira
Barreiro
Até o próprio parto pode ser traumático para a criança.
A infância é uma fase fundamental no desenvolvimento humano, pautada por experiências que podem moldar significativamente a vida futura da pessoa. No decorrer da primeira infância, a criança aprende a conectar-se com as figuras de vinculação. Aprende a confiar, aprende a explorar. Aprende a aprender.
Além dos aspectos positivos, é natural que a criança também experiencie alguns movimentos negativos. Uma ou outra discussão dos pais devido ao cansaço nos 1ºs meses de vida do bebé, por exemplo. Há coisas inevitáveis. Outras não. Essas outras, são aquelas coisas que podem facilmente ser evitadas desde que tenhamos em plena consciência de que a nossa função primária é agora cuidar daquele ser vivo recém-nascido que nada merece mais do que o nosso amor e proteção.
É um engano acreditar que as crianças, por serem tão jovens, não se irão lembrar de determinados eventos, e portanto, não serão de modo algum afetadas por essas memórias. Na realidade, as crianças não são imunes às suas experiências iniciais.
Podemos tomar como exemplo, a clássica “oferenda” de fezes, que ocorre tipicamente quando a criança faz cocó pela primeira vez sozinha e mostra com orgulho aos pais. Aquela é a primeira coisa que a criança conseguiu produzir sozinha, sem a ajuda de ninguém.
É um marco de autonomia. E assim, a criança mostra com todo o seu orgulho aquele cocó que acabou de fazer. E como reagir? Bom… devemos reagir, tal como quando nos esforçamos muito naquele nosso projeto de trabalho e mostramos ao nosso chefe. Queremos que nos diga que fizemos um bom trabalho. E se isso acontecer? Não é difícil entender que nos irá reforçar a auto-estima, não é?
Então é assim que devemos reagir com aquela prenda da criança, que nos mostra com orgulho a sua criação. Elogiar o seu belo trabalho e promover a autonomia. Mas… claro que isso nem sempre acontece. Por vezes não se evita uma cara de nojo ou até palavras de reprovação. Ora pense em como se sentiria se o seu chefe tivesse essa atitude perante aquele projeto que lhe levou tanto esforço pessoal e do qual se orgulhava… É assim que a criança se irá sentir.
Mesmo quando a pessoa não se lembra conscientemente de um evento traumático de criança, o impacto emocional poderá persistir refletindo-se em mecanismos de defesa desadequados e crenças negativas ou limitantes no decorrer da sua vida.
Famílias que discutem ou se agridem; que vêm programas com violência ou sexo na televisão; que consomem álcool ou drogas; e isto tudo com as crianças a assistir, estarão a contribuir negativamente para o desenvolvimento daquela criança.
Ainda existem pais que, por exemplo, têm relações sexuais na presença de um bebé. No mesmo quarto que o bebé. Podem achar que, por ser muito nova, a criança não irá compreender o que está a acontecer e, portanto, não será impactada.
Por um lado, é verdade. A criança não compreende. A criança pode até estar no seu berço e pode não ver. Mas a criança ouve e sente. Tentemo-nos colocar no seu lugar. No lugar de uma criança que não vê nada senão o tecto do quarto e as paredes do berço ou então apenas um ambiente escuro com um ligeiro apontamento de uma luz de presença. Quão assustador seria ouvir gemidos, sons de corpos a bater um no outro, a respiração dos pais e mais perturbador, da própria mãe, ofegante. E os cheiros… até os cheiros desempenham aqui um papel importante. Ao ponto de uma pessoa mais tarde, anos mais tarde, poder desenvolver um repúdio através do cheiro, sem que consiga entender a sua origem.
Outro exemplo é o da violência doméstica. O impacto sofrido por uma criança que assiste a um dos progenitores a ser agredido violentamente e por vezes frequentemente, é o suficiente para plantar a semente da ansiedade, dos medos, da inadequação social…
Importa construir para a criança um ambiente estável e seguro, para potenciar um adulto estável e seguro. Importa consciencializarmo-nos de que a criança absorve as experiências ao seu redor desde a barriga da mãe.
A criança não esquece.
Pela sua saúde mental,
Ivo Pereira
Psicólogo Clínico
04.07.2024 - 19:35
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