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Acolhimento de uma mãe e sua filha refugiadas de uma guerra injusta
Por Olga Naia Silva
Barreiro
Tudo começou em fevereiro de 2022, quando se dá a bárbara invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Houve logo muito voluntariado, muita solidariedade entre os povos, e também nós (família) enviamos alguns mantimentos. Mas nessa altura senti que era pouco, que poderíamos fazer mais perante tão tristes relatos que nos chegavam por todos os media. Eram tantos refugiados, famílias destroçadas, vítimas mortais, crianças órfãs, etc...
Bastou-nos umas horas entre família para traçar um plano solidário de uma ajuda mais “agressiva”. Conseguiríamos acolher, pelo menos, uma criança, dar-lhe uma vida melhor, e principalmente não permitir que uma guerra lhe retirasse sua vida. Mas uma criança, apenas, seria um processo tão complexo, moroso, talvez até injusto e provavelmente inglório.
Então pensamos melhor em família e traçamos um novo plano: adaptar a casa de forma a disponibilizar um espaço provisório, mas que fosse acolhedor e com privacidade, e comprometemo-nos todos a ajudar na finalidade única – acolher uma mãe com o(a) filho(a) e acompanhá-los na sua integração em Portugal, e especialmente na cidade onde vivemos - o Barreiro.
No início de março fiz o registo no site HelpForUkraine, site no qual diversas famílias de todo o mundo ofereciam a sua ajuda através do acolhimento a vítimas da guerra. Bastou um dia para ser contactada por mães com seus pequenos filhos que fugiam da guerra, e foram tantas... Na árdua tarefa de escolha, optamos pelo que considerávamos mais justo: a primeira pessoa que nos contactasse seria, a princípio, a que iriamos ajudar. E essa pessoa seria a Olena, uma mulher de 30 anos que até ao dia em que começou a guerra vivia feliz, com a filha Varvára de 4 anos e o marido em Kharkiv, com planos de vida em comum. Claro que com a guerra tudo mudou, e tiveram de tomar a decisão talvez mais difícil das suas vidas: o pai ficar na guerra a defender o país, e a mãe fugir e salvar a filha de uma morte quase certa por uma guerra que, como sabemos, tem dizimado tantos milhares de inocentes.
De Kharkiv para Polonia e da Polónia para Portugal, Olena e a filha caminharam a pé durante quilómetros e quilómetros, carregando alguns pertences, e juntamente com tantas outras mães e seus filhos, debaixo de bombardeamentos que ficarão para sempre na memória. Os voluntários que as transportaram no autocarro da TST da Polónia para Portugal relataram as difíceis e tristes condições em que essas mães e seus filhos chegaram perto deles e a mudança que sentiram ao longo da viagem, por estarem salvas e sentindo tão grande solidariedade.
No caminho para cá, através de diversas redes sociais como Facebook, Instagram, WhatsApp apresentámo-nos, fomos falando sobre diversos assuntos: sobre as nossas famílias, sobre a sua filha, o porquê de escolher Portugal, quando chegariam, enfim, tudo o que pudesse esquecer a guerra - como se isso fosse sequer possível. Lembrávamo-las que brevemente estariam a salvo e a recomeçar uma nova vida agora em segurança, na esperança de as animar, minimamente. Claro que a língua inglesa foi indispensável para esta convivência, pois nem a Olena sabia nada de português, nem nós sabíamos na altura nada de ucraniano ou russo.
Finalmente a chegada das minhas convidadas aconteceu às 17:00 do dia 19. Dos vários autocarros que trouxeram inúmeros refugiados, constatamos, como prevíamos, que nenhum trazia homens entre os 18 e os 60 anos. Esses ficaram com a árdua tarefa de ficar na guerra a defender a Ucrânia. Após apresentações, registos, burocracias, finalmente viemos para casa... Uma casa diferente, num país diferente, uma língua diferente, com desconhecidos, mas que sobretudo queríamos que se sentissem bem e em segurança.
Decorreu um ano e tanta coisa aconteceu, de tal forma que, por vezes, parece que passaram mais do que apenas 365 dias. O balanço deste ano é positivo, estrondosamente positivo! Podemos agora dizer que estão integradas na sociedade tanto a mãe, como a filha. E melhor, também a Olena salvou mais pessoas – os seus próprios pais, que chegaram a Portugal no verão de 2022, e ainda uma família, composta por uma mãe e duas filhas, amigas de longa data de Olena.
Se tudo isto foi fácil? Não, infelizmente não foi. Houve, não obstante, uma grande solidariedade de todos os que nos rodeiam, essencialmente da comunidade civil. A resposta social do Estado e Municípios não foi tão notória, exceto em dois aspetos: na emissão dos Títulos de Proteção Temporária que no início foi rápida, e na resposta escolar à pequena Varvára, que permitiu começar a frequentar a escola ainda na mesma semana em que chegou a Portugal – e o que ela adorou! Não menos importante foi a atitude da Olena em que nos momentos mais difíceis (e houve variados), nunca desistiu e foi à luta: na procura de trabalho mesmo não falando nada de português, na procura de casa para arrendar (quando todas as soluções fracassavam).
Por parte do Município cheguei mesmo a sentir que houve um “descartar” da responsabilidade de integrar estes cidadãos, nomeadamente em termos de habitação e de aulas de português para Ucranianos, ao contrário do que é e foi tão publicitado na comunicação social. Foi de facto a resposta solidária prestada pelas pessoas - amigos e comunidade escolar (professores e pais) - que nos valeu e que contribuiu maioritariamente para a integração desta família. Também nós fizemos tudo para que essa integração fosse o mais rápida e agradável possível, sei que fomos indispensáveis para conseguir o arrendamento da casa onde vive, pelo menos num primeiro momento, pois logo após o senhorio conhecer a situação foi mais uma pessoa que prestou a sua solidariedade monetária ao prescindir de um mês de aluguer, além de ter doado alguns utensílios necessários na habitação.
Mas lembro também tantos outros amigos que com a sua solidariedade ajudaram nesta causa. Não querendo esquecer ninguém, destaco a equipa da Multioticas do fórum Barreiro, na pessoa do Dr. Gonçalo Lopes, pela oferta dos óculos para que a Olena pudesse trabalhar; os diversos membros do Coral TAB pelo envio de bens essenciais e brinquedos para a pequena Varvára, o maestro Manuel Gonçalves pelas aulas de piano oferecidas também à Varvára, as aulas e atividades após horário letivo na escola, oferecidas também para a Varvára, assim como todas as outras pessoas que se ofereceram para ajudar em tudo o que estivesse aos seus alcances.
Concluindo, quero dar os parabéns a esta mãe que conseguiu salvar a filha e dar-lhe uma vida em segurança, agradecer a todos os que se juntaram para apoiar esta causa, desejar a continuação desta amizade entre famílias e sobretudo que se sintam em casa no nosso Portugal!
Olga Naia Silva
19.03.2023 - 11:36
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