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Susana Mourato Alves-Jesus, investigadora de Direitos Humanos
“O trabalho valoriza sempre quem o faz. O resto é gratidão”

Na abertura da Sessão de Entrega Rostos do Ano 2024, que decorreu hoje pela manhã, numa Sala de Cinema Castello Lopes, no Fórum Barreiro, convidámos a investigadora de Direitos Humanos, a prestigiada barreirense Susana Mourato Alves-Jesus, que no ano de 2023 foi distinguida como Rosto do Ano Cidadania, para proporcionar aos presentes uma reflexão pessoal, sobre o seu pensamento acerca da importância da Distinção Rostos do Ano para vida da comunidade barreirense. Divulgamos o texto integral da sua intervenção:
O significado da Distinção Rostos do Ano para a comunidade
Bom dia a todas e a todos.
De acordo com Pierre Grimal, a partir do seu Dicionário da Mitologia, a deusa Mnemosyne (Μνημοσύνη) é uma personificação da Memória na tradição clássica grega. Filha de Úrano (o Céu) e de Geia (a Terra), pertence ao grupo das Titânides. Zeus uniu-se a Mnemosyne nove noites seguidas e desta união nasceram as conhecidas nove Musas, que presidem às várias artes e ciências.
Hesíodo, um autor grego do séc. VIII a.C., na sua obra intitulada Teogonia, texto que relata o nascimento dos deuses (theoi) a partir do caos e do cosmos (κοσμογονία), identifica, pela primeira vez, na literatura, a figura de Mnemosyne, a Memória, a mãe das Musas, do seguinte modo:
[...] finalmente, é à raça dos homens e dos Gigantes poderosos
Que entoam os hinos, alegrando o espírito de Zeus na mansão do Olimpo,
As Musas Olímpicas, filhas de Zeus detentor da égide.
Na Piéria, gerou-as, unida ao pai Crónida,
Mnemósine, que reina nas colinas de Eleutéria,
para que fossem esquecimento de males e alívio de aflições.
Durante nove noites, então, possuiu o prudente Zeus,
Tomando lugar no seu leito sagrado, longe dos Imortais.
E quando, depois, passou o tempo devido e, com o volver das estações,
Se completaram os meses e muitos dias chegaram ao seu termo,
Ela deu à luz nove filhas de sensibilidade igual, às quais apenas o canto
Preocupava, nos peitos, o coração isento de cuidados,
Junto ao mais alto dos picos do Olimpo coberto de neve.
É lá que fazem luzir os seus coros e têm as suas belas moradas
E junto delas habitam também a Graça e o Desejo,
Em ambiente de festa.
Em primeira instância, a Memória é a capacidade humana de retornar a experiências passadas através do exercício do pensamento, ou, mais simplesmente, “a capacidade de lembrar”. No âmbito da ciência histórica, a memória é um dos aspectos fundamentais para a atividade do historiador e um dos instrumentos fundamentais para o exercício do lembrar.
As distinções individuais aqui atribuídas hoje valem acima de tudo pelo seu conjunto, mas não deixam de celebrar também modos particulares de ser e de estar na vida da cidade. Demonstram a preocupação e o desígnio de um órgão da comunicação social local, o Jornal Rostos, em destacar ações e modos de estar que dão a sua voz e empenham o seu tempo em prol do exercício da cidadania, da cultura, da história e da memória de uma região.
O Jornal Rostos é, no Barreiro e na região de Setúbal, um veículo privilegiado de informação cidadã, mas também um instrumento de cultura e de memória, pois o seu serviço, não só à cidadania ativa e à formação de Opinião, mas também à valorização das Artes, das Letras e da Vida Vivida é manifesta.
Esta cerimónia, que tem hoje aqui lugar e que se tem repetido ao longo dos anos, é uma prova fundamental disso mesmo: a prova do empenho de uma equipa reduzida que, com poucos meios – como toda a imprensa local, mas sempre empenhada atá à última gota –, ousa dar valor àquilo que pessoas também empenhadas (e tantas vezes com tão poucos recursos) fazem, no seu melhor, em várias áreas, trazendo impacto para a vida da cidade, criando valor que não fica só no local, mas que se dispõe de igual modo ao serviço dos Outros. Ano após ano, esta cerimónia tem distinguido iniciativas, movimentos, pessoas, mais ou menos conhecidos, que passam então a figurar de modo mais visível na memória coletiva da região. O Jornal Rostos é, portanto, também um jornal de Memória e um jornal de Cultura, um jornal que dá não só voz à voragem dos dias, mas que tem uma preocupação com o tempo longo.
E o que é a Cultura? De acordo com o Padre Manuel Antunes, um padre jesuíta que foi também famoso professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na transição entre a ditadura e a democracia, Cultura não é o mesmo que civilização: a civilização trabalha no imediato, no sentido do ter, na curta duração, no tempo do consumo. A cultura trabalha na longa duração, no sentido do ser, na valorização a longo prazo das pessoas e das coisas e da sua dignidade, do que somos, do que fomos e do que poderemos ser.
Neste sentido, o Jornal Rostos dá também importância ao tempo longo, ao tempo da cultura, da memória e da História, mestra da Vida, que nos permite uma consciência mais plena dos tempos cada vez mais difíceis e urgentes que hoje experimentamos também a nível global, e que nos pode, de alguma forma, orientar na salvaguarda de valores fundamentais, de sustentabilidade, de fraternidade, de paz e de humanidade.
Distinguindo personalidades, coletividades, movimentos cívicos, organizações, que vão da política ao desporto, passando pela literatura, pelas artes, pela saúde, pela solidariedade, entre tantos outros, a distinção Rostos do Ano vem fazendo, ano após ano, um justo exercício de memorização de uma cidade que é, e que tem sido, ao longo dos tempos, um território fecundo de histórias de uma comunidade viva, de trabalho, de resistências, de crescimento, e de memórias. Uma cidade que, antes de o ser, já era espaço também da nossa História mais alargada, nomeadamente lugar de preparativos para a expansão marítima.
Haruki Murakami, escritor japonês contemporâneo, evidencia o seguinte, no seu romance 1Q84, que evoca distopias: “A nossa memória é composta pelas nossas memórias individuais e pelas nossas memórias coletivas. As duas estão intimamente ligadas. E a história é a nossa memória coletiva. Se a nossa memória coletiva nos for retirada, [...] perdemos a capacidade de sustentar o nosso verdadeiro eu.”
Primo Levi, no seu livro-entrevista intitulado O Dever de Memória, recua à sua experiência de cativeiro em Auschwitz. Entre outras considerações que retoma sobre a existência (des)humana naqueles campos de concentração, de trabalho e de morte, sublinha a “vontade de memória” que experimentou durante o seu aprisionamento naquele espaço, durante 10 meses. No entanto, essa “vontade de memória” era continuamente inviabilizada pelas condições do lugar:
“Sim, essas notas que eu tomei são bem reais: tinha mesmo um caderno, mas elas não ultrapassaram vinte linhas. Tinha demasiado medo, era extremamente perigoso escrever. O próprio facto de escrever era suspeito: não eram, pois, notas, mas a vontade de tomar notas, tendo à mão um lápis e papel e o desejo de transmitir à minha mãe, à minha irmã, aos meus, a experiência desumana que eu vivia, mas não houve notas pois eu sabia que não as poderia conservar. Era materialmente impossível. Onde guardá-las, em que esconderijo? Num bolso?... Não tínhamos nada, mudavam constantemente as nossas camas, as nossas enxergas, mudavam as nossas roupas também, não havia nenhum meio de guardar fosse o que fosse. Apenas dispunha da minha memória.”
Para Primo Levi, a necessidade da escrita constituía um dos impulsos humanos para o exercício da memória e, por tal, um meio para o reflexo da identidade, da subjetividade, da pulsão humanizante. Sem a escrita e sem o registo dos dias que passam, a memória mais elaborada e duradoura tende a perder-se, ou a adulterar-se.
A distinção Rostos do Ano, promovida pelo Jornal Rostos, constituirá para a comunidade barreirense e para a região mais alargada um verdadeiro trabalho de escrita da memória sobre a vida do concelho e das suas gentes, dos seus esforços, sonhos e realizações ao longo de todos estes anos, observados, registados, vividos pela equipa dedicada deste que também tem o mérito de ser um dos primeiros jornais online do nosso país. Com proximidade, curiosidade, inquietude, análise crítica, o Jornal Rostos procura não só dar notícias, mas também refletir sobre a vida de uma cidade, olhando também sempre o futuro, mas valorizando quem é comunidade no dia a dia e quem trabalha, por isso, para a memória da mesma, tantas vezes com poucos meios, ou de forma voluntária, mas dedicada, empenhada e com esperança no futuro.
Porque o tempo da grande História e dos grandes feitos já há muito deu lugar ao tempo das pequenas histórias, e de tantos homens e mulheres sem rosto, que afinal são também faces dessa mesma História.
Neste sentido, o Jornal Rostos, através da cerimónia anual que faz de reconhecimento público e exercício mnemónico, torna mais visíveis esses rostos para a nossa região. Não obstante, e para terminar, apesar de mais ou menos reconhecimento que exista, não resistimos a parafrasear e a acompanhar António Sousa Pereira, que assim nos diz: “O trabalho valoriza sempre quem o faz. O resto é gratidão.”
Susana Mourato Alves-Jesus
22.06.2025 - 16:13
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