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Leal da Silva - uma conversa por dentro da memória
Nesta terra havia uma cultura de respeito, de reconhecimento, de dignidade

Leal da Silva - uma conversa por dentro da memória<br />
Nesta terra havia uma cultura de respeito, de reconhecimento, de dignidade “O fecho das fábricas foi para mim um fecho de um campo que eu conhecia bem, não digo que foi a morte de um parente, mas foi um vazio, que se criou nesta terra.
Nesta terra havia uma cultura e essa cultura era uma cultura vertical, muito, muito bem estabelecida, de respeito, de reconhecimento, de dignidade. Às vezes não se ia pelos objectivos que se queriam, mas era uma escola.”, disse Leal da Silva, numa conversa com o jornal «Rostos».

José Miguel Leal da Silva, celebra hoje, dia 8 de Junho, 85 anos de vida. Nasceu às 19h30, na então freguesia de Santa Maria, concelho de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto. Ontem, pela manhã, mantivemos uma breve conversa de café com Leal da Silva. Uma lição de história. Uma lição de vida. Uma lição de serenidade.

Apreensão pelo regresso da Guerra ao solo europeu

Como ele próprio referiu no dia do lançamento do livro com a sua biografia, nasceu “nos dias que precederam a entrada do exército franquista em Bilbao, na Guerra Civil de Espanha”, e, posteriormente viveu grande parte da sua infância “resguardado pela neutralidade” dos horrores da 2ª Grande Guerra Mundial.
Estas recordações motivam que Leal da Silva, manifeste a sua profunda tristeza e apreensão pelo regresso da Guerra ao solo europeu, lançando o seu apelo ao “respeito pelo direito à liberdade e à convivência pacífica dos povos evite tenebrosas escaladas e ponha breve fim a este pesadelo trágico”.

Na CUF eramos uma equipa de alto abaixo

Leal da Silva veio para viver para o Barreiro no ano de 1961, para exercer funções na CUF, na Fábrica dos Ácidos, recorda que a produção de ácidos no complexo industrial da CUF, remonta aos tempos do arranque da indústria química no Barreiro -“começou por ser ácido sulfúrico em 1908”.
Num tempo que a CUF empregava milhares de pessoas, acima de 10 mil ou 11 mil trabalhadores. A Fábrica era uma cultura. Na Fábrica de ácido Sulfúrico seriam entre 800 a 900 trabalhadores.
“Na CUF eramos uma equipa de alto abaixo. Existia diálogo entre todos. Só com a colaboração de todos foi possível fazer o que fizemos. Conseguíamos trabalhar em equipa para sermos, no Barreiro, nesse tempo, o maior produtor europeu de ácido sulfúrico. Fizemos verdadeiras proezas.”, recorda.
Perguntámos: Que lhe deu a fábrica como homem?
“Muito conhecimento. Muito conhecimento dos homens. O trabalho de equipa. Os desafios técnicos. De novas descobertas. De resolver problemas. Fazer engenharia química.
Sabe, há uma coisa engraçada, na Alemanha as fábricas são dirigidas por Químicos e não por Engenheiros Químicos. Em Portugal entre o Químico, que conhece as reacções, e o Engenheiro Químico há uma barreira – o engenheiro químico faz a forma de se conduzirem às reacções; o Químico conhece as reacções. O Engenheiro Químico é o reactor. O Químico é a reacção. É uma grande diferença. Isto fez que a engenharia química aparecesse algo tardiamente na europa.”, sublinha.

Trabalhadores tinham formação interna

Como sentiu as transformações que foram vividas na fábrica ao longo do tempo?- perguntámos.
“As evoluções nas fábricas foram muito pequenas, porque estavam muito bem enquadradas desde o início.
É bom dizer, ao contrário do que por vezes se diz por aí, que o pessoal CUF, ao nível ao nível de Forneiro, ao nível de encarregado, ao nível de Chefe de Casa de Fornos, tinha Cursos Internos, que eram da responsabilidade dos Chefes, na descrição de funções. No processo químico havia a formação do pessoal. Alguns desses cursos tinham formação quase, até, ao nível universitário. Era uma base para o bom funcionamento e para a boa compreensão”, salienta.

Candidato à presidência da Câmara Municipal do Barreiro

No meio da nossa conversa vaguemos por diferentes assuntos, desde a sua candidatura autárquica à Presidência da Câmara Municipal do Barreiro, pelo Partido Socialista.
“Fui candidato por acaso. Carlos Pires o candidato adoeceu, teve um esgotamento. Foi uma candidatura que tive muito pouco apoio do Partido, fechamos a campanha em Coina, com um candidato de Almada.
Ao nível local foi muito bom o apoio de Aires de Carvalho. Mas houve um grupo que foi para Lisboa dizer que o Barreiro era um caso perdido.
A verdade é que ficamos a pouco votos e com a esta candidatura marcamos a mudança que depois se concretizou com Emidio Xavier”, recordou Leal da Silva.

Alfredo da Silva dizia brutalidades na cara das pessoas

A nossa conversa matinal, ali, no café é um deambular por assuntos diversos, eu que, comos e costuma dizer, costumo falar pelos cotovelos, escutava, limitava-me a escutar para aprender, é belo aprender com as experiências de vida.
Leal da Silva, fala do patrão Alfredo da Silva, de quem ouviu contar estórias, era um homem que conhecia as pessoas, falava com os trabalhadores, perguntava-lhe pelas mulheres e filhos, conhecia os seus trabalhadores. Ele observava os trabalhadores. Fazia sempre o possível para ficar com os melhores. Escolhia os melhores. Era uma selecção.
“Alfredo da Silva dizia brutalidades na cara das pessoas, não tinha discursos escondidos”, sublinha.
Refere que o “discurso escondido” é daqueles que nada dizem pela frente e quando voltam as costas, pensam e assim fazem : “Quando te apanhar a jeito lixo-te (não foi isto que disse) à meia volta”, disse. E rimos em grandes gargalhadas.
“Alfredo da Silva quando decidiu arrancar com as fábricas no Barreiro, ele não queria um obra mixuruca, queria uma obra com nível europeu e produziu para entrar nos mercados europeus. Ele através da fábrica combinou tudo.”, refere Leal da Silva.

Kowa-Seiko depois do arranque da fábrica “funcionou dez dias

Na conversa, entramos pelas memórias dos investimentos feitos, nos tempos da Quimigal, por decisões dos governos, investimentos que – “foram parta sucata”, sublinha.
O Kowa-Seiko depois do arranque da fábrica “funcionou dez dias”, recorda Leal da Silva.

A Praceta Zamenhof está um escarro

E deambulando por uma aula de memórias, estórias e de vida, recorda-se a intensa vida cultural do Barreiro, quer com génese na CUF, quer com génese dos ferroviários.
“Eu aprendi esperanto com um ferroviário. O pai da Drª Carolina. No Barreiro existia uma cultura esperantista. A língua aprendida e divulgada por marítimos, ferroviários, caixeiros viajantes. Era uma língua fácil de aprender e facilitava as comunicações. Quer Staline, quer Hitler perseguiram os esperantistas.
No Barreiro temos a Praceta Zamnhof que está um escarro, pintada de azul e vermelho. Ele não era Russo, era Polaco”, refere.

Um reconhecimento

A propósito do livro, editado numa colecção de histórias de liderança - «José Miguel Leal da Silva – entre a química e minas”, comentou que esta obra é um “reconhecimento, é um preenchimento de ordem técnica que para mim tem valor”.
Recordou que quando visitava fábricas pela Europa, nessas visitas, falava-se das pessoas que foram os criativos dessas fábricas – “em Portugal não se falava”.

Nesta terra havia uma cultura

Leal da Silva, refere a necessidade da Escola Superior de Tecnologia do Barreiro intensificar a sua ligação à comunidade.
“O Barreiro inferioriza-se”, comenta.
“As pessoas não se esforçam pela vida da terra”, acrescenta.
“O fecho das fábricas foi para mim um fecho de um campo que eu conhecia bem, não digo que foi a morte de um parente, mas foi um vazio, que se criou nesta terra.
Nesta terra havia uma cultura e essa cultura era uma cultura vertical, muito, muito bem estabelecida, de respeito, de reconhecimento, de dignidade. Às vezes não se ia pelos objectivos que se queriam, mas era uma escola.”, disse Leal da Silva, numa nota final de conversa.
O desejo é que o Barreiro voltasse a ser uma escola? – interrogámos.
“Sim, mas não vai voltar”, comentou.
Concordo consigo, Leal da Silva, não vai voltar.
Obrigado por esta conversa Leal da Silva. Parabéns.

António Sousa Pereira

08.06.2022 - 13:20

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