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BARREIRO - Companhia Teatro Projéctor
“A última noite”: uma dimensão estética que emociona e toca os nervos

BARREIRO - Companhia Teatro Projéctor<br>
“A última noite”: uma dimensão estética que emociona e toca os nervos Num tempo que, cada vez mais, sentimos vai-se perdendo a capacidade de pensar, o individualismo, a competitividade, o sucesso, o progresso social mede-se pelo último modelo de carro, pelo ter, ou não ter vivenda, uma sociedade marcada pelo consumismo, neste tempo que, sentimos, existe uma desenfreada intencionalidade de substituir a memória pelo presentismo.

Sim, neste tempo, no qual a gestão de opinião pública e o pensar a vida emerge na espuma dos dias que se cultiva nas redes sociais, uma sociedade que aposta numa comunicação tik-tok. Come e cala. Come e leva. Na verdade, neste tempo, é uma alegria enorme viver momentos de pura libertação, de encontros com a história e com as memórias da humanidade e do meu país.

Digo-vos, vivi esse sentimento, recentemente, quando vi, no Teatro Municipal, pela Companhia Arte Viva, a peça “Um país sem cor”, encenada por Paula Magalhães. Um tempo de encontro com as memórias de um país que se libertou em Abril. O Abril visto sem julgamento, ali, “puro e limpo”.
Igualmente, neste sábado, senti essa alegria, quando no Auditório da Companhia Teatro Projéctor, fui ver a peça “A última noite”, encenada por Abílio Apolinário, um espectáculo que arranca do tempo as memórias do holocausto, do terror nazi.

Existe, sublinho, coisas em comum nas duas peças. Em primeiro lugar referir que em cena, nas interpretações, em ambas as peças, apenas estão mulheres, todas, num caso e noutro, actrizes com garra. Em segundo lugar as duas peças relatam e evocam a história, e, deixam ao público o direito de pensar e interpretar os factos. São peças que não querem impor construções, nem interpretações da história, apenas, de certa forma, procuram proporcionar um olhar, puro, por dentro das memórias e de factos históricos.
Foi isso, afinal, que me deixou feliz, neste tempo em que parece, permanentemente, quererem, com algoritmos, condicionar o pensamento, sentir que a liberdade respira na cidade.
E mais, sentir que, nestes tempos, há pessoas que consideram fundamental promover a capacidade de pensar, agitar a memória, o pensamento e sacudir a poeira dos dias, valorizando a ação cultural – o teatro - como ferramenta de enriquecimento da cidadania.

Escrevo este texto, hoje, dia 27 de janeiro, o dia que a ONU instituiu para celebrar – Dia Internacional das Vítimas do Holocausto. É, afinal, esse horror que é celebrado pela Companhia de Teatro Projéctor, com esta sua magnífica peça «A Última Noite».
Um texto original de Abílio Apolinário, que recorreu a testemunhos de sobreviventes, documentos históricos para proporcionar uma viagem pelas memórias do campo nazi de Ravensbruck. Um campo de concentração destinado apenas a mulheres, que, ali, foram submetidas às mais cruéis torturas, humilhações. Funcionou entre 1939 e 1945, e, por ali, estiveram cerca de 132 mil prisioneiras, detidas em condições desumanas. Estima-se que 92 mil perderam a vida, vitimas da fome, de doenças, de violações, de execuções, de maus tratos, queimadas nos fornos, e, submetidas a experiências enorme brutalidade. Eram judias, ciganas, sindicalistas, opositoras políticas de Hitler.

Apetece-me dizer, na verdade, que este espectáculo, a 47ª produção da Companhia de Teatro Projéctor, (sem querer ignorar ou sobrevalorizar outros trabalhos anteriores), é o coroar de um historial com 48 anos ao serviço da cultura e do concelho do Barreiro. Uma encenação sublime, que começa no preâmbulo do espectáculo, onde a Arte se confunde com a vida e nasce memória. Uma dimensão estética que emociona, toca os nervos, é arte na teatralidade, em sentido pleno, no espaço e no tempo, no envolvimento do público, nas provocações, com grandeza e simplicidade. É uma encenação ousada, que comunica valores na sua própria beleza e magnífica criatividade. Não tenho palavras. Não perca. Vá ver e sentir. Esta é uma peça para sentir com os olhos e viver com os nervos. Sentir e pensar.

As interpretações estão excelentes. Vivas, dinâmicas, dão energia ao espaço cénico. O texto sente-se nas palavras vividas com ardor, dito, pelas personagens. Encarnam a loucura, o desespero, a dor, o amor, em suma, há comunicação. Escutamos as estórias com o coração em lágrimas.
Gostei de todas as interpretações. A peça é um puzzle de diálogos e estórias partilhadas. As mulheres e as circunstâncias.
A Svetlana Manta, no papel de Hedda Muller, é impressionante como encarna aquela personalidade nazi e vive o seu papel com intensidade.
Igualmente, destaco a pureza das interpretações, lúcidas, com a energia que o texto exige, quer de Laura Oliveira, ou de Anabela Pereira. Ou, por exemplo a energia corporal que emerge da loucura expressiva da personagem vivida por Ana Matos.
O ritmo da peça coloca a todas as actrizes uma exigência de grande responsabilidade. Viver e sentir as personagens com garra, com emoção, sem divergências de circunstância. O texto por si é puro e duro. Basta. Aquelas mulheres estão em palco, sem ambiguidades, sente-se que estão a viver e a sentir o inferno do campo de concentração. É nisso que se concentram, é nisso que dão emoção ao texto que nasce na expressão dos seus rostos. Emoções que transmitem para o público, a dor e a ternura. O publico que é actor no silêncio.

Ângela Gomes, Daniela Vaz, Flor de Oliveira, Hélia Monteiro, Inês Nunes e Paula Almeida. Mulheres de garra, mulheres de fibra, que dão vida ao palco.
E sobre ternura, sobre expressão dramática, sobre sentido estético do texto, sobre a sensibilidade poética, sobre a dor e sobre o amor, a interpretação, do texto-poema que flui na suavidade da voz de Eva Felisberto, é um momento da peça que transcende o belo, toca as margens do sonho. É lindo nos seus próprios silêncios!
Um registo indispensável, a leveza do jogo de luzes, entre a escuridão e a penumbra, e, também, o deslumbramento que envolve o espectáculo, aquela melodia suave, que nasce no ritmo e sonoridade do violino. Uma brilhante execução de Filipa Andrade. Aqueles sons são retalhos de luz sonora que dão vida ao espaço cénico. Excelente enquadramento.
Gostei da simplicidade e força do cenário. Os figurinos estão realistas, assim como a caracterização das personagens, com dignidade, pureza e sem exageros. Perfeito.
Em conclusão. Uma bela criação teatral. Um tema de grande actualidade. E, parafraseando um momento da peça, quando é declamado um poema de Paul Elluard, dizer que, para mim, esta é uma peça para sentir, conhecer, abraçar a força e o amor inscrito na palavra: Liberdade!

António Sousa Pereira
TE – 180
Equiparado a Jornalista

Nota – Não deixe de ir ver, aos sábados elas 21h30, Auditório do Teatro Projéctor.

27.01.2025 - 19:51

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