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Deixem-me Ser Camarro!
Por João Naia da Silva
Barreiro

Deixem-me Ser Camarro! <br>
Por João Naia da Silva<br>
Barreiro Não me recordo ao certo quando o terei começado a fazer, mas durante muito tempo tive o hábito de referir que era camarro. E dizia-lo com muito orgulho a quem me perguntava de onde era. Acontecia inclusivamente com alguma frequência dizer que era “camarro”, e quem o perguntava ficava sem perceber na mesma de que terra eu era, até que eu reformulasse a resposta e dissesse que era barreirense. Mas para ser honesto gostava dessa confusão e dúvida que provocava nas pessoas.

Certo dia tive o desprazer de ser alertado, por um velho amigo, no alto do seu orgulho camarro, que eu na verdade não era camarro porque nasci no Alto do Seixalinho, e camarros eram apenas e especificamente aqueles que nasceram no “Barreiro Velho”. Escusado será dizer que caiu em mim o Carmo e a Trindade da desilusão. Cheguei mesmo a momentaneamente ridicularizar e reprovar tal teoria, não com base no descrédito, mas com base no meu orgulho, ferido. Ainda assim, mal tive oportunidade, fui logo procurar perceber qual era o fundamento para tal teoria, que, entretanto, tenho vindo a ouvir muito mais gente barreirense a afirmá-la ou concordar.

A título de curiosidade, e fazendo apenas uma nota de marginália, o corticeiro, jornalista e escritor Horácio Alves dedicou 4 capítulos do seu livro “A Vila do Barreiro – Ensaio para Servir de Subsídio à sua História” ao termo “camarro”, abordando a sua etimologia, evolução e significado, num estudo interessantíssimo e que considero ser um dos mais completos estudos feitos até hoje sobre esta matéria. A quem se interessar por esta temática especifica, aconselho vivamente a que comece por esta obra.

Mas ignorando por agora se será ou não certo que, de facto, camarros são apenas aqueles que nasceram no Barreiro Velho, é importante perceber-se que, se formos por esta lógica de ideias de que camarros são apenas os naturais desta zona específica, então estes camarros estão em vias de extinção, e prevê-se garantidamente o seu desaparecimento dentro de alguns anos. Ora vejamos, se já há várias décadas que qualquer criança que nasça, salvo raras e devidas exceções, o faz em maternidades, hospitais ou clínicas especializadas, e não havendo nenhuma delas no perímetro do Barreiro Velho, então há muitos anos que não há novas crianças a nascer no Barreiro Velho, ou seja, novos camarros. E naturalmente os que ainda existem, que terão nascido numa época em que era ainda comum nascer-se em casa, vão desaparecendo com a lei da vida. Isso fará com que, mais cedo do que mais tarde, o “camarro” estará extinto. Será um nome inutilizado e que irá apenas permanecer nas memórias porque já ninguém o vai ser. E depois já nem isso. Desaparecerá por completo. É inevitável!

Do meu ponto de vista, a melhor forma de contornar esta prenunciada extinção e preservar este adjetivo assim como a tradição da sua utilização, é que se aceite que haja uma modificação no conceito de “camarro”. Se ao contrário de incluir apenas os naturais no Barreiro Velho, a definição de “camarro” for também alargada àqueles que são naturais do concelho do Barreiro – ou àqueles que são naturais das freguesias que constituem a zona urbana do Barreiro, se se quiserem autoexcluir, por vontade própria, as freguesias ou lugares mais afastados tais como Coina, Santo António da Charneca, Palhais e Penalva – então aí já teremos novos camarros a nascer todos os anos, e garante-se a continuidade de existência deste “povo”.

De qualquer forma, do meu ponto de vista, a salvaguarda deste termo é de extrema importância no âmbito da preservação dos costumes barreirenses. Se refletirmos sobre isto, facilmente percebemos que este tipo de termos e a sua utilização são tradições muito importantes que devem ser mantidas, pois fazem inquestionavelmente parte do conjunto de memórias imateriais identitárias e de grande importância para o testemunho e para a história de uma terra. E mais do que uma simples palavra num livro de história ou do que um simples termo numa enciclopédia mais completa, deve a sua utilização continuar a fazer parte do quotidiano desta terra, sempre.

João Naia da Silva

02.04.2023 - 00:14

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