colunistas
Silver bullet
Por Nuno Santa Clara
Barreiro

Nem de propósito, uma Senhora Ministra invocou muito recentemente a imagem da “bala de prata” para discorrer sobre a vacuidade das soluções milagrosas. Ainda bem.
A recente declaração do Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, feita com pompa e circunstância, de que o seu país iria fornecer munições de urânio empobrecido (depleted uranium) à Ucrânia parecia algo semelhante ao recurso à silver bullet, a munição maravilha que iria influenciar definitivamente o curso da guerra.
A Rússia denunciou de imediato esta in iniciativa como mais um passo na escalada do conflito. Naturalmente, ou, como diria Sherlock Holmes, “elementar, caro Watson".
Nesta questão existe um déjà vu, uma memória algo incerta, mas ainda presente.
Relembremos a Segunda Guerra do Iraque (2003). Os Estados Unidos e a o Reino Unido decidiram recomeçar a guerra, com o argumento de que Saddam Hussein tinha um arsenal de armas de destruição maciça. Após quase uma década de averiguações, concluiu-se que não era verdade: os relatórios de informações foram “martelados” até justificar a intervenção militar.
No terreno, entre as tropas empenhadas, de um lado e de outro, houve certas consequências, que ficaram conhecidas, do lado ocidental, como o “Síndroma do Golfo”. Uma série de problemas de saúde que foram detectados sem que, até hoje, tinha sido dada uma explicação cabal.
Estava assim aberto o caminho para a especulação. E uma das vias foi a utilização das munições de urânio empobrecido, a silver bullet agora anunciada. Sobretudo para aqueles opositores da guerra para quem, para justificar a causa, o conteúdo ultrapassa a forma (velha querela oriunda do mundo da estética neorrealista).
Comecemos pelo princípio. Uma blindagem pode ser atacada, basicamente, por duas formas: por uma carga explosiva ou por um projéctil de energia cinética.
No segundo caso, pois é deste que se trata, a energia cinética é medida pelo produto do quadrado da velocidade pela massa do projéctil. Portanto, a energia pode ser potenciada pelo aumento da velocidade ou pelo aumento da massa, ou pela combinação dos dois.
O aumento da velocidade obtém-se melhorando a peça (o canhão, para os leigos) e hoje chega-se aos 2.000 metros por segundo, estando no limite das armas convencionais.
O aumento do peso do projéctil depende da sua densidade. A do ferro é de 7,9, a do chumbo é de 11,3, a do volfrâmio é de 19,2 e a do urânio 19,05. Significa isto que um projéctil de volfrâmio ou de urânio têm uma energia cinética cerca de 2,4 vezes superior à de um projéctil de ferro.
O urânio é procurado para dele se extrair o seu isótopo U235, radioactivo, que representa apenas 0,72% do total, e é usado para produzir energia nuclear ou bombas atómicas, ficando o isótopo U238, chamado empobrecido, à espera de melhor destino. Tendo o manuseamento do urânio problemas de toxicidade, e sendo o volfrâmio muito empregue na metalurgia, a solução é fácil: descarregar o urânio empobrecido no vizinho da frente.
Assim, com uma cajadada, matam-se dois coelhos: desfazemo-nos de um produto incómodo, e encontra-se uma utilização para esse mesmo produto.
O objetivo está em que, quando um projéctil de urânio de alta velocidade embate numa blindagem à base de ferro, a transferência de energia e a reacção exotérmica provocam a fusão dos materiais, tendo como resultado uma chuva de metais fundidos a alta temperatura dentro do blindado, provocando o incêndio dos combustíveis, a explosão das munições, a destruição do equipamento do interior e a morte dos tripulantes.
Como efeito secundário, os resíduos de urânio, uma vez condensados, ficam espalhados, contaminando solos, águas e alimentos.
Por essa razão, as normas das US Forces são claras e conhecidas: é proibida a utilização de munições de urânio empobrecido em território americano. Ou seja, como o mercurocromo, e ao contrário da Democracia, são para uso externo.
Por outro lado, o fornecimento destas munições insere-se na mesma linha do das restantes munições: gastar as que se têm em armazém, em risco de ficarem obsoletas, para adquirir novas. A alternativa seria desmontá-las ou destruí-las, o que fica muito caro, e é um processo potencialmente poluidor. E quem não se lembra do nosso navio S. Miguel?
Obviamente, a Rússia lavrou o seu protesto, mas entre o facto de semear milhares de minas, destruir infra-estruturas e aterrorizar populações, e o facto de contaminar algumas superfícies, a diferença é difícil de destrinçar.
E, quanto às tripulações dos carros de combate, o debate seria ainda mais bizantino: não terão a oportunidade de ficar contaminados.
Isso fica para quem tiver de recuperar os seus corpos, para guardar nas caixas de zinco de que falava a jornalista e escritora russa Svetlana Alexievich, prémio Nobel de Literatura.
Nuno Santa Clara
11.09.2023 - 23:12
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