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Do Povo Eleito ao Herrenvolk
Por Nuno Santa Clara
Barreiro

Do Povo Eleito ao Herrenvolk<br />
Por  Nuno Santa Clara<br />
Barreiro O conceito de Povo Eleito aparece na Bíblia, no Antigo Testamento, naturalmente, referindo-se aos Hebreus, descendentes de Abraão, que, vindo da cidade de Ur, na Mesopotâmia, se estabeleceu na Palestina e aí lançou as raízes do seu povo.
Além de conter as bases da religião judaica (da qual derivaram, mais tarde, o cristianismo e o islamismo), a Bíblia conta a saga da nação hebraica.

Tudo isto é bem sabido, pelo menos pelos que tiveram uma educação religiosa. O que por vezes nos escapa é que a Bíblia, como se disse, é também a história de um povo, e como este conseguiu se afirmar e manter entre vizinhos poderosos, num dos lugares que já então era um dos mais turbulentos da Terra. História agitada: além dos problemas internos, os hebreus foram deportados para a Babilónia, tiveram que emigrar para o Egipto, regressando depois à Palestina; foram esmagados pelos romanos, em 70 D.C., e foram dispersados por três continentes, só começando a regressar timidamente à Palestina a partir do século XX; por fim, foram quase eliminados pelos nazis, através da “Solução Final”.

E eis que renasceram como Estado, e em permanente expansão, com uma estranha tolerância internacional que parece aceitar-lhes o direito de conquista, negado a todos os outros povos, conforme ficou estabelecido na Carta das nações Unidas.
Fácil é assim aceitar a doutrina de um Povo escolhido por um Deus que lhes garantiu um destino tão especial. Mas com o efeito colateral de alguns dos povos cristianizados terem decalcado esse conceito, e passado a considerar-se também como “povo eleito”, ou seja, superior aos demais povos.

Quando uma crença passa a religião de Estado, assiste-se a um atropelo de valores. Por exemplo, a primeira cruzada não foi contra os muçulmanos, mas contra os cátaros, membros de uma heresia que frutificou no Sul de França, no século XII. Acabou praticamente com o cerco e tomada da cidade de Béziers, onde conviviam cristãos e cátaros, até que o chefe cruzado Simon de Montfort deu uma directiva que ficou célebre: “Matai-os todos! Deus reconhecerá os seus”.
A Bíblia, como se disse, é também a História do povo hebreu, e das suas guerras. Contem narrativas fascinantes de ardis e embustes, com falta de escrúpulos e ausência de piedade, com que compensavam a falta de guerreiros. E não só pelas armas: Judite seduziu o general assírio Holofernes, embebedando-o e decapitando-o, salvando assim o seu povo. E Ester, casada com o rei babilónio Assuero, obteve dele a salvação dos judeus, episódio ainda hoje celebrado na festa do Purim.

De modo que, quando Netanyahu invoca a Bíblia para justificar os bombardeamentos de Gaza, mais não faz do que recordar velhas histórias, adaptadas e interpretadas como convém.
Há mais povos que se reclamam como eleitos, podendo nós encarar alguns casos com candura, outros com preocupação, e outros ainda prevendo que acabarão em tragédia. Candura temos nós, quando entoamos aquele hino religioso que se refere ao “povo teu protegido / entre todos escolhido /para o povo do Senhor”; preocupação quando os americanos se consideram o povo eleito para gerir o Universo; com sentimento de tragédia quando uma comunidade se considera como um “Povo de Senhores” (Herrenvolk, em alemão).

Foi o que se o passou com a Alemanha, quando embarcou na disfunção colectiva do nazismo. Um Povo, uma Ideia, um Chefe: estava feita a trilogia que tudo justificava, sem receio de julgamentos dos homens, ou mesmo da História. Pois não tinham eles Razão? Quem ficasse pelo caminho seria considerado como entulho da construção do Mundo Novo.

E assim foi reduzido a literalmente a entulho o ghetto de Varsóvia, em 1943, quando os judeus resistiram para tentar evitar a deportação para os campos de concentração. As imagens da época são uma espécie de ensaio geral para a redução a escombros da cidade de Gaza.
Dizem que a História se repete. Não é bem verdade, mas um dos princípios do determinismo diz que as mesmas causas, em circunstâncias semelhantes, produzem os mesmos efeitos...

Nuno Santa Clara

07.11.2023 - 18:48

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