colunistas
Todo o Mundo e Ninguém
Por Nuno Santa Clara
Barreiro
Todo o Mundo é mentiroso, e Ninguém fala a verdade.
De onde a actualidade de Gil Vicente...
Recordando um dito de Winston Churchill, “nunca se mente tanto como antes das eleições, durante a guerra e depois da caça”. A mentira pode assim ser considerada como algo atávico ou cultural, sem que o mentiroso seja objecto de reprovação generalizada. Prometer a Lua às fatias, chamar vitória a uma derrota, ou referir um javali com quinhentos quilos, não parece causar repúdio a ninguém.
Há mesmo um caso em que a mentira se torna obrigatória. Na Arte Militar, o embuste, o engano, a finta, o ardil, são considerados o supra-sumo da habilidade do estratega.
Exemplo clássico da nossa História (ou, pelo menos, da tradição popular) é o de Deu-La-Deu Martins, mulher de armas, que, no cerco de Monção, durante as Guerras Fernandinas (final do século XIV), mandou cozer pães com a última farinha que havia no castelo e atirá-los aos castelhanos, dizendo que comessem à vontade, pois ali dentro havia fartura. Foi o suficiente para o cerco ser levantado.
(E, já agora, um ponto de meditação sobre a igualdade de género)
Exemplo mais recente foi a Operação Fortitude, durante a II Guerra Mundial. Os ingleses montaram um aparato enorme de pretensos meios militares, incluindo carros de combate insufláveis, barcaças de madeira, tráfego rádio entre unidades inexistentes, interdição de áreas, e até um general famoso (George Patton) para comandar um exército de fantasia. Como resultado, os alemães não empenharam todas as forças na Normandia na altura do desmbarque, esperando o ataque principal na região de Calais. Quando perceberam o engano, já era tarde.
Mentir, na guerra, não é uma opção: é uma obrigação. Quem deixa transparecer ao inimigo a situação real das suas tropas pode ser acusado de várias coisas, desde negligência criminosa até alta traição.
Deste modo, a “guerra de comunicados” nos conflitos atuais (Ucrânia e Faixa de Gaza) tem de ser entendida nesta óptica. Portanto, intenções das operações, número de baixas, aviões abatidos, alvos atingidos, vitórias e derrotas, têm de ser filtradas e confirmadas por fontes independentes.
Claro que as manobras de desinformação se tornam mais fáceis quando existe uma predisposição para as aceitar. O ódio, o medo, o preconceito ou o simples oportunismo levam as pessoas a acreditar em coisas que cinco minutos de reflexão bastariam para resolver. Como matar dez mil soldados num exército de cinco mil, abater aviões de um país sem aviação, ou destruir fábricas de bombas nucleares de quem não domina essa tecnologia.
Combinando isto com os raciocínios pré condicionados, temos o resultado atingido. Todos os muçulmanos são terroristas, como por essas europas todos os portugueses são pedreiros, ou todos os espanhóis são toureiros.
Assim sendo, quando foi anunciado que alguns funcionários palestinos da United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East (UNRWA) ou seja Agência para os Refugiados da Palestina e Próximo Oriente das Nações Unidas, eram membros ou simpatizantes do Hamas, o resultado foi uma dezena de países cortarem o apoio à Agência.
Voltamos assim à culpa colectiva, tão cara a Joseph Stalin, que com isso fez desaparecer do mapa os tártaros da Crimeia, cujos poucos sobreviventes neste momento desempenham naquela península o papel dos índios na América ou dos aborígenes na Austrália.
Decerto que assim se poupam uns dinheiros, que podem ser desviados para causas mais nobres.
Pelo que, voltando a Gil Vicente, podemos ditar ao diabinho Dinato: escreve aí que Todo o Mundo corta o apoio à UNRWA, e Ninguém pergunta porquê.
Em português da época, poderíamos esclarecer: dado que a Faixa de Gaza está em liquidação total, torna-se escusado gastar cera com ruins defuntos...
Nuno Santa Clara
11.02.2024 - 14:57
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