colunistas
A jangada de betão
Por Nuno Santa Clara
Barreiro
Decerto se lembram daquele excelente romance de José Saramago, a Jangada de Pedra.
Na imaginação fértil do nosso Prémio Nobel, por um mistério inexplicável e por uma providência insondável, a Península Ibérica separava-se do resto da Europa, por uma fenda vertical que seguia os exactos contornos da fronteira dos Pirinéus, seguindo depois à deriva rumo ao Atlântico, provocando, primeiro a curiosidade, depois a ansiedade, tanto dos seus habitantes como os que ficavam na rota dessa deriva.
Essa fábula enaltecedora da nossa especificidade ibérica parece ter inspirado outros sonhadores, quiçá não tão dotados para a escrita, mas com uma imaginação não menos fulgurante. Não como uma espécie de deriva continental, mas como a trajectória errante e aleatória de um naco de terra não tão extenso, mas não menos importante.
Tratava-se, nem mais nem menos, do Novo Aeroporto de Lisboa. História com mais de meio século, primeiro timidamente à beira Tejo, em Rio Frio (já na margem Sul), depois errando entre as lezírias, as charnecas, as bases militares, activas ou não, e outras soluções de deixar envergonhado, por curteza de vistas, o nosso Saramago.
Assim, aquela planura de betão, torre de controlo, terminais, hangares e oficinas, foi percorrendo o País, não ao sabor dos ventos, como as caravelas, mas ao jeito da fantasia, muito mais inconstante.
Transpôs o rio, chegou à Ota, derivou para Sul, até Beja, voltou ao centro, até Santarém, regressou ao Tejo, no Montijo, e, se não fosse uma decisão consensual, poderia ter viajado até Castelo Branco, ou mesmo até Bragança.
Terminadas deste modo as cenas dos capítulos anteriores, passamos às seguintes.
Faltava achar um nome condigno para o Novo Aeroporto de Lisboa. Não parecia coisa fácil, e não foi. Para os que duvidam dessas dificuldades, relembre-se o sucedido com a atribuição de um nome para o aeroporto do Funchal.
Poderia ter sido Bartolomeu de Gusmão, Gago Coutinho, Sacadura Cabral, Sarmento de Beires ou outro dos pioneiros da nossa aviação.
Mas não foi.
A decisão recaiu em Luís de Camões, solução sem dúvida consensual e irrecusável, já que ninguém pode pôr em causa os méritos do nosso maior Vate, tanto internamente, com a nível mundial.
Mas fica um travo de uma decisão politicamente correcta, mas um tanto alheia ao assunto.
O nome deveria reflectir aquela epopeia de uma jangada de betão, vagueando como um peregrino ou pregador itinerante, sendo de todos os lugares e de nenhum.
E que reflectisse de modo clara a decisão final e a terra diversas vezes apontada, e agora assumida.
E também com um toque cosmopolita e europeu, de uma língua bem conhecida de um milhão de portugueses.
Deste modo, ficaria: ALCOCHETE JAMAIS!
Nuno Santa Clara
15.05.2024 - 09:31
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