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Não me venham depois chamar Cassandra…
Por Carlos Alberto Correia
Barreiro

Não me venham depois chamar Cassandra…<br>
Por Carlos Alberto Correia<br>
Barreiro Em outubro de 2005, durante a revolta juvenil em Paris, quando os carros ardiam pelas ruas, disputava as presidenciais, pela primeira, vez Manuel Alegre.
No Blogue “Sacanas e Sentimentais”, que criei para apoiar essa candidatura, escrevi então um texto com o título “Paris já está a arder?” que, expurgado das questões relativas à análise do Programa de Manuel Alegre, aqui trago, apenas pela sua atualidade e, reforçando, tudo continua como dantes.

Onde se lê Paris, coloque-se Lisboa. Onde se fala em LePen, leia-se Ventura e, finalmente troque-se 2005 por 2024 e veja-se como pouco se aprendeu.
(…)
O mal-estar que, nos arredores de Paris, produziu os confrontos e incêndios, já não é novo. Muitos casos dispersos, com maior ou menor cobertura dos media, foram acontecendo ao longo dos anos. Os sociólogos, desde a década de sessenta, chamam a atenção – com pouco entendimento por parte do poder – para o erro urbanístico e social, que foi/é a concentração de populações de semelhante dominância étnica ou social, em espaços delimitados, com escassos recursos em equipamento e rotulados – e rotulando – negativamente pela sua localização e composição.

O desprezo pelas chamadas de atenção concretiza-se agora nos atos de revolta cega, contra pessoas, instituições e objetos próximos, visando alcançar os inatingíveis e distantes poderes. São dolorosos e doloridos recados.

Agora que a onda rebentou e que a insegurança das pessoas clama por mais polícia nas ruas, a maior parte das gentes está disposta a ceder a sua liberdade por um pouco menos de medo. Não é grande a troca mas é o que se sente no ar.

Dos atos desesperados, de uma juventude igualmente desesperada, poderão advir consequências trágicas e contrárias, em tudo, aos motivos que os levaram à revolta.

Em primeiro lugar a justificação, plenamente aceite, da redução de direitos e garantias dos cidadãos, em segundo lugar o ainda maior isolamento das populações emigrantes, em terceiro lugar, por reação, o crescimento contínuo dos partidos de extrema-direita, como o do Sr. LePen, e a possibilidade de, cada vez mais, influenciarem as políticas de emigração e de integração, senão mesmo de ascenderem, de vez, ao poder de Estado.

Tem, neste momento, pouco efeito o discurso de compreensão sobre as causas da revolta juvenil. Esse discurso é apenas realizável antecipadamente ou a longo prazo. A curto prazo as políticas repressivas serão as únicas atuantes e creio bem, já estarão a ser, não estudadas, mas implementadas, com consequências nefastas, para a França, para o Mundo e para os migrantes que se acumulam às portas da Europa.
(…)
Ouvi, ontem, no comentário semanal do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa o seu discurso de tranquilidade em relação ao possível contágio destes atos no espaço nacional.

Acho que está rotundamente enganado!

Se em alguma coisa este movimento de rebeldia tem semelhanças com o maio de 68, é nas possibilidades de contágio, por vivências semelhantes, noutros países da Europa, o nosso compreendido. Para os distraídos chamo a atenção para os bairros degradados das nossas maiores cidades e para a sua cintura industrial, onde existem todas as condições que levaram aos distúrbios em França, esperando apenas a faúlha que as faça eclodir. O efeito mimético não será, certamente, a menor …

Já disse atrás que os remédios, para fazer efeito, têm de ser administrados em tempo certo. Não sei, ainda nem já, qual é o tempo que nos resta. O que sei é que com as políticas escolares, sociais e económicas que continuamos a alardear, apenas conseguimos aceleradores para a desgraça.
(…)
A continuar deste jeito, pensando que somos diferentes, que aqui, porventura graças à Senhora, as mesmas causas sociais produzirão efeitos atenuados ou diferentes, é olhar para a onda e esperar, sem aprender a nadar, que ela não nos submerja.
(…)
Se continuarmos pelo caminho que estamos a trilhar, não se admirem depois, se de súbito, numa destas noites, o vosso bairro acordar no meio do clarão do vosso carro a arder…

Não me venham depois chamar Cassandra ou profeta da desgraça.
E não é que bate certo…?

Carlos Alberto Correia

23.10.2024 - 23:52

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