colunistas
O método das intenções
Por Nuno Santa Clara
Barreiro

Aparentemente, é simples: derrotar-nos e ganhar a guerra. Ou mesmo ganhar a guerra, sem ter de nos vencer em combate.
Esse era o sonho do célebre Sun Tzu (ou Suen Tze), general, estratega e filósofo chinês do período chamado dos “Estados Combatentes”(séculos VIII – III AC), antes da unificação da China sob o imperador Qin. Dele continuam a ser feitas inúmeras citações, mas salientamos a seguinte (tradução livre): se a vitória no combate é segura, devemos combater, ainda que o dirigente político o proíba; se do combate não puder resultar na vitória, não devemos combater, mesmo contra a ordem do dirigente político.
Abertas as divergências, como avaliar as intenções do adversário, mesmo antes de se tornar inimigo?
O método clássico era o das intenções. Chefes militares como Alexandre o Grande, passeando ou caçando com os seus generais, perguntavam-lhes frequentemente: se isto fosse um campo de batalha, o que farias? E o que faria o inimigo? Era como uma antecipação do Kriegsspiel, o Jogo da Guerra, criado pela escola militar do Estado Prussiano, no século XIX.
Apesar de toda a colheita de informações, a questão de fundo mantinha-se. E a forma de a resolver era pôr-se no lugar do adversário. E aí elaborava-se uma manobra, com o inconveniente de por vezes conhecer mal a doutrina, os meios e a verdadeira intenção do inimigo.
Os americanos, com o seu espírito prático, criaram uma nova abordagem, em que os factos se sobrepunham à criatividade e subjetividade. A questão era posta assim:
• O que é que o inimigo pode fazer?
• Qual é a coisa pior que pode fazer?
• O que é provável que faça?
Esta doutrina foi adoptada pela NATO, e esperemos que assim continue (qualquer que seja o futuro da NATO).
Com a deflagração da Guerra da Ucrânia, a proliferação de analistas e comentaristas tem tido notável. O que é bom, fazendo tirar de um limbo as questões de Defesa, que afinal interessam a todos. Mas também algo negativo, quando se vê um conjunto de pessoas a bater na mesma tecla, dando por certo o que pode ser incerto.
Se a isto juntarmos as guinadas das declarações e orientações da actual Presidente dos EUA, fica completo o panorama de desinformação para o grande público. E não temos ninguém que, como o falecido Almirante Pinheiro de Azevedo, declare que “é só fumaça”, como não temos uma espontânea criança que diga “o Rei vai nu”.
Ora vejamos: há mais de meio século que os americanos se queixam que a Europa os explora; que temos melhores estradas que eles; que o guarda-chuva nuclear os arruína; que temos melhor nível de vida; e afirmações do género, constituindo mantras de além Atlântico.
Mantras, slogans e ladainhas têm o seu efeito: de tanto repetir, tornam-se verdades. Quando os carneiros do Animal Farm (O Triunfo dos Porcos), de George Orwell, desatavam a berrar “quatro pernas bom, duas pernas mau” tornava-se difícil argumentar.
O fim oficioso da Guerra Fria, com a derrota e implosão da União Soviética, deixou um grande vazio no pensamento estratégico ocidental. A pergunta era: agora, quem é o inimigo? A China ainda gatinhava na sua recuperação histórica, havia umas reservas de indígenas desavindos no Médio Oriente, na América Central e Caraíbas, e o terrorismo islâmico estava demasiado disperso para poder ser levado a sério. Até que lá se arranjou um inimigo.
Costuma dizer-se que o vencedor deve ser magnânimo na vitória, dentro do princípio que o inimigo de ontem é o cliente de hoje e o aliado de amanhã (casos doa Alemanha ou do Japão, por exemplo).
Não foi o caso da Rússia, após a implosão da URSS. Tal como a Alemanha após o tratado de Versailles (1919), continuou a ser tratada como inimigo e, pior, a ser alvo de escárnio, tal como na célebre boutade: “aquilo” é o Burkina Faso com a bomba atómica. Razão suficiente para fazer renascer o nacionalismo, tal como sucedeu com o nazismo na Alemanha derrotada. Dito de outra forma, mais vale ser temido que escarnecido.
Por outro lado, a tendência de colher os frutos da vitória agravou o relaxamento dos europeus, embalados pela garantia do Fim da História, anunciado, de modo diáfano por Francis Fukuyama em 1992.
Naturalmente, para adoçar a pílula, tinha sido dito a Gorbachev que a NATO não se expandiria para Leste – mas expandiu-se. Quando, na sequência dos factos, a Rússia ocupou a Crimeia (de população maioritariamente russa), a surpresa resultou num facto consumado. Mas quando, através de intervenções e destabilização da Ucrânia, o regime de Kiev entrou em colapso, Rússia e EUA entraram abertamente no baile e tocaram as campainhas de alarme.
De certo modo, Rússia tinha tanta legitimidade em procurar impedir a instalação de mísseis ocidentais a 200 km de Moscovo como os americanos tiveram ao impedir a instalação de mísseis em Cuba, a 90 km de Key West. Felizmente, nessa altura (1962), Kennedy e Khrushchev tinham estatura de estadistas e resolveram o problema.
Entretanto, as prioridades americanas tinham mudado de hemisfério. Entre as duas Guerras Mundiais, o Pacífico tornara-se a área de confronto com o imperialismo japonês. Foi a agressividade de Hitler que fez balançar as prioridades do Pacífico para o Atlântico e Europa, para grande fúria dos Comandantes da área do Grande Oceano. Repete-se portanto a História, agora com a China, muito mais poderosa, a lançar os desafios.
Henry Kissinger, o discípulo de Bismarck, o cultor da Realpolitik, trabalhou para separar a China da URSS, com sucesso; pelo que se seguiu, até com demasiado sucesso. Mas a ideia de base estava certa: impedir o conluio das duas grandes potências. Isso passaria agora por apaziguar ou mesmo cativar uma Rússia enfraquecida, o que transparece agora nas posições americanas, mas aconteceu após o exacerbar do confronto na Ucrânia e da mobilização da Europa para a cruzada anti russa, na qual esta embarcou com pompa e circunstância.
A “Operação Militar Especial” de Vladimir Putin revelou-se um erro de cálculo monumental. A ideia de manobra era simples: ataques de forças especiais sobre Kiev e Kharkiv, que cairiam sem oposição; avanço em larga frente no Donetz; e progressão ao longo da costa do Mar Negro até ultrapassar o rio Donetz; depois, logo se veria, podendo ir até Odessa, cortando a acesso ao mar e garantindo uma ligação terrestre segura à Crimeia. Com estes trunfos na mão, negociar a anexação de áreas russófonas e instalar um governo favorável, tipo Bielorrússia. Ou, melhor ainda, pelo sistema de estado obediente e tampão, como na Europa de Leste, no tempo do Pacto de Varsóvia.
A coragem e determinação dos ucranianos deitaram este plano perfeito por terra. As tropas especiais foram dizimadas e a ofensiva passou a marcar passo. Na velha equação fogo-movimento-protecção, o fogo impôs-se, graças aos mísseis, drones e artilharia, que cobravam um preço elevado por cada avanço, ficando para além do aceitável e suportável; já não se estava na I ou II Guerras Mundiais. E assim se voltou à guerra de trincheiras: mesmas causas, mesmos efeitos; só mudou a tecnologia.
Só que faltava o elemento mobilizador, o tal que leva a reacções em cadeia e ao perturbar, quando não bloquear, de análises frias.
Não parece que alguma vez o objectivo de Putin fosse invadir a Europa; nem teria meios para tanto. Mas a ideia estava lançada, e era cativante, e eis um coro tipo tragédia grega a anunciar grandes desgraças. O público, é claro, adorou, e o coro virou oráculo. Príncipes e sacerdotes oficiaram no desenrolar da acção, e ficámos presos ao espectáculo. Com a agravante de o principal protagonista se ter retirado da acção, ficando os actores secundários em palco, passando a tragédia grega a ser uma commedia al improviso, nome original da commedia del´arte italiana.
Os objectivos anunciados por Putin eram consolidar a Crimeia, anexar as zonas russófonas, a não entrada da Ucrânia na NATO e ter como vizinho um governo aliado.
O curioso é que são as teses defendidas por Donald Trump, e o dono do teatro tem sido ele, apenas parecendo interessado em cobrar as ajudas, recicladas em vendas, com metais raros e até com centrais nucleares.
Assim sendo, se as coisas ficarem assim definidas, Putin atingirá os seus objectivos, os dele, e não os que lhe foram atribuídos pelo coro dos figurantes.
Ou seja, num enredo que teria seduzido Ésquilo ou Eurípedes, o coro, metido à pressa no desempenho, passou de secundário a personagem central, mas inquinado pelas suas próprias palavras.
E o destino, traçado pelos deuses, deu ao tirano a vitória pretendida, sem ficar mal visto pela História.
Afinal, contentou-se com o que queria, desistindo do que não queria, mas que lhe era atribuído.
Foi o coro que lhe preparou a vitória, ao ressuscitar o método das intenções.
Nuno Santa Clara
29.03.2025 - 11:50
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