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Os bons pobrezinhos
Por Nuno Santa Clara
Barreiro

Os bons pobrezinhos<br />
Por Nuno Santa Clara<br />
Barreiro Nas muitas e variadas formas de exercer a Caridade, uma delas era as senhoras benfazejas terem um número restrito de pobres seus protegidos. Natural e humano: eram casos conhecidos, de gentes quase da família, que tinham comportamentos aceitáveis e eram gratos a quem lhes fazia o Bem.

Não se tratava de uma obrigação, no sentido imposição de uma taxa ou um serviço determinada pela hierarquia política ou religiosa (por vezes confundidas). Era apenas para sossego das suas consciências, e cumprimento de um preceito religioso. Que, se não fosse cumprido no espírito da Graça (que é um dom de Deus) de nada valia perante o Senhor.
Desde sempre tem havido gente de posses que distribui bens pelos pobres. Se o fizeram com Caridade, ou como forma de promover a sua imagem, Alguém há-de julgar.

A Filantropia (literalmente, amor pelos Homens) atingiu o seu píncaro no final do século XIX, quando alguns milionários americanos (Rockfeller, Vanderbilt, Hearst) pareciam competir entre si na área da Filantropia. O que não os impedia de tratar impiedosamente os rivais ou de explorar os trabalhadores, pelo que as intenções dessas acções ainda hoje são contestadas.
Essa tradição manteve-se até aos nossos dias, com Warren Buffet, Bill e Melinda Gates, Michael Blomberg, George Soros e Mackenzie Scott, a destinar entre cinco e dois mil milhões de dólares, cada um, a acções filantrópicas.

A Faixa de Gaza é uma área totalmente dependente da ajuda externa, carecendo de tudo, desde água a combustível, de alimentos a medicamentos, de roupa a um simples tecto. Por isso é naturalmente objecto de muitas acções filantrópicas (embora lhes chamem outros nomes), com variadas origens, desde países muçulmanos ou cristãos, a ONG internacionais, e entidades públicas ou privadas.
Por uma questão se operacionalidade, e cobertura legal, essa ajuda era canalizada pela ONU. O resto, sabemos nós: os postos de distribuição foram atacados, os funcionários mortos ou feridos, e, cereja em cima do bolo, cortado o acesso às colunas de abastecimento.

Quando as imagens dos efeitos deste embargo começaram a correr mundo, não havia remédio senão recomeçar o fornecimento. Não por Caridade, mas pela imagem externa.
Mas com judiciosa escolha pelos benfeitores. Lançou-se mão de uma organização americana, Gaza Humanitarian Fundation (GHF), criada em 2005, dirigida por um antigo marine, Jake Wood, com o apoio dos Governos americano e israelita.

Logo em 25 de maio, Wood anunciou que se demitia, porque era impossível atingir os objectivos da fundação quando “cumpria os princípios humanitários de humanidade, neutralidade, imparcialidade e independência”.
O resultado foi que, numa comunidade privada de um mínimo de enquadramento (fosse do Hamas, da Autoridade Palestiniana, ou outro) e sem as agências da ONU ou as ONG, o povo esfaimado tomou de assalto as colunas de reabastecimento. Com tiros altos e baixos, e alguns mortos.
Maus pobrezinhos...

Mas não está tudo perdido: pelo menos pode alegar-se que, com gente desta, não há nada a fazer. Para bem das consciências. E que o Destino se encarregará do resto.
Conta-se que, durante a Guerra Civil de Espanha, um prelado terá dito: “benditos sejam os canhões se, nas crateras que abrirem, florescer o Evangelho”.
Parafraseando, poderá dizer-se: “ benditas sejam as bombas e granadas, se nos terrenos que arrasarem, nascer uma nova Riviera”.

Nuno Santa Clara


01.06.2025 - 13:36

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