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Estou de luto!
Por Carlos Alberto Correia
Barreiro

Estou de luto!<br />
Por Carlos Alberto Correia<br />
Barreiro Queria escrever qualquer coisa por ti e para ti, mas estou de luto. Secaram-se-me as palavras, não sei como dizer-me da perda irreparável, a não ser pela memória de quase oitenta anos de companheirismo, aventuras e desventuras e, sobretudo amizade.

Fizemos grande parte do nosso percurso juntos: a escola primária, o secundário, o serviço militar e até, vê lá, vir morar para o Barreiro num tempo em que já bastava colocar num postal o endereço “Kira – Barreiro” e termos a certeza de que te seria entregue. E agora morreste! Eu sei, todos caminhamos nessa mesma jornada, mas, por vezes é difícil de compreender. Gastamos o tempo, preocupamo-nos com ninharias e coisa reputadas como sérias e, vá se lá a ver, um dia partimos e só ficam as memórias. Não de ti, porque, pelo mundo fora, em museus e casas particulares, o teu nome continuará vivo na tua Arte Maior. O difícil de aceitar é de que nunca mais voltarás a pintar. E, nessa presença a tua ausência dói.

Perante este tão triste acontecimento, na como te disse, dificuldade e de encontrar as palavras necessárias, resolvi republicar, aqui no Rostos, uma crónica que, neste mesmo Jornal, veio à luz, penso que em 2008.

Aqui vai ela como mensagem de saudade, retrato de como fomos e como, com ironias e dores verdadeiras, produzimos o nosso mundo:

Os meus quadros de Kira

1 – O Peninha

Acordo todos os dias a olhar para um belo quadro a que chamou “Os Noivos” e que está no meu quarto. É uma ótima maneira de enfrentar mais um dia que nunca se sabe como vai correr ou acabar. Mas não é desse quadro que vou falar no momento. Refiro-me a ele, porque hoje, ao levantar-me, olhando-o, tendo em conta outras obras suas que me acompanham em casa, vi, claramente, como cada uma delas marca momentos importantes das nossas vivências. Decidi assim, ir, ao longo dos próximos tempos, com os vagares da meditação e das disponibilidades, fazer um levantamento, dar testemunho deles e das suas circunstâncias.

Assim, o primeiro quadro, que não posso reproduzir aqui para o compartilhar convosco, como gostaria, porque nem sei se ele ainda existe, a que ele chamou “o grito” e eu, por circunstâncias que aduzirei denominei “o peninha”, nasceu em 1966.

Foi deste modo

Vivia eu uma desesperada paixão correspondida pela minha musa mas contrariada pela família. Lembram-se do poema do Zeca:
Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rês
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura
Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão

Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi
Puseram-me a ferros
Soltaram o cão
Mas tive o diabo na mão(…)

Pois ele corresponde inteiramente à forma como a família da minha enamorada me via e me queria fazer sentir. Nesse tempo as diferenças sociais eram bem mais marcadas e marcantes que nos dias de hoje e a minha pretensão mais parecia heresia que coisa de gente com juízo. Mas a juventude é única e alimenta-se dos obstáculos e por isso o nosso namoro continuava afrontando ventos e marés.

Aproximava-se a data de aniversário da minha amada e eu queria dar-lhe uma prenda que a merecesse. Dinheiro não direi que não abundava porque isso era ser demasiado otimista. Na realidade quase não havia. Foi então que eu tive uma ideia fabulosa. Fui ter com o Kira, então ainda o Gama, com o meu projeto: Eu comprava os materiais e ele pintar-me-ia um quadro para eu oferecer como prenda de aniversário.

Com a generosidade que o caracteriza anuiu imediatamente. Alguns dias antes do aniversário veio o Kira com a tela – que se me lembro era um contraplacado trabalhado – e eu fiquei maravilhado. O quadro, de uma beleza cromática inexcedível na linha dos laranjas avermelhados, representava um vasto espaço onde a terra e o céu se confundiam, com uma única e mínima figura a perder-se na linha de horizonte onde os tons de laranja-céu e laranja-terra se uniam. Nessa figurinha quase a desaparecer, postada na convergência das linhas verticais e horizontais desse mundo ignoto, pressentia-se um desespero, uma angústia, uma solidão que fazia ouvir dolorosamente o grito irreprimível e reprimido que ameaçava soltar-se-lhe do peito. Nada, para o caso e o momento, poderia ser simbolicamente mais perfeito que essa obra.

Como a figurinha, parecendo esmagada pelas forças cósmicas, resistia estoicamente e parecia ter, como um índio, uma pena na cabeça, eu chamei-lhe “o peninha” e assim passou a ser conhecido.

Que foi feito desse quadro? Não sei! Cruzaram-se tempos e guerras, mudaram-se perspetivas e nunca mais eu e ela festejámos, juntos, um aniversário. Mas para lá de tudo o que possa ter acontecido, mesmo que “o peninha” se tenha perdido nos naufrágios da vida, ele existe e estará sempre presente pendurado nas paredes dos meus sentimentos. E é e será para sempre o meu primeiro quadro do Kira.

Por quanto ficou escrito, repito, estou seco de palavras e, irrevogavelmente, de luto!

Carlos Alberto Correia


30.06.2025 - 13:57

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