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Eu e a burca
Por Carlos Alberto Correia
Barreiro

Eu e a burca<br />
Por Carlos Alberto Correia<br />
Barreiro Confesso que este é um assunto que me deixa particularmente incomodado.
Primeiro porque sou, sem qualquer dúvida, contra qualquer trajo obrigatório por rígidos códigos de vestuário; segundo se, ainda por cima, tal advier de uma obrigatoriedade religiosa, presumindo algum estatuto de subordinação natural das mulheres. Portanto, à partida, como reação imediata, burca, não!

Porém, logo a seguir dou por mim, nos já distantes anos de meninice, a observar, com a naturalidade de quem sempre viu tal e portanto nada tem a contestar, como as mulheres portuguesas, sobretudo nos estratos sociais mais desfavorecidos, viviam embiocadas nos seus lenços, escondendo cabelos, quase ocultando a face, no jeito recolhido de quem vem ao mundo para obedecer. Ou, como todas as mulheres, de todos os estatutos sociais, para entrarem numa igreja eram obrigadas a cobrirem-se com um véu. Acrescento, ainda, a naturalidade com que aceitava o quotidiano das vestes monacais das freiras, semelhando dissimulados hijabs.
Aqui o meu pensamento entra em crise. Proibir a burca e permitir o resto? Se sim, como tratar esses restos, que são muitos, mas nos são familiares?

Tentemos, num jeito de prós e contras, uma análise racional.
A discussão sobre a proibição do uso de burcas e de véus integrais nas sociedades democráticas ocidentais tem vindo a ganhar terreno, dividindo opiniões e revelando as tensões latentes entre liberdade individual, segurança pública e identidade cultural. O tema, mais do que religioso, é um espelho do modo como as democracias lidam com a diferença e com os limites da tolerância.
Os defensores da proibição partem frequentemente de uma lógica de proteção do espaço público e da igualdade de género. Argumentam que o rosto é, antes de tudo, o primeiro instrumento de comunicação e reconhecimento social — e que o véu integral, ao ocultá-lo, ergue uma barreira entre o indivíduo e a comunidade. Numa sociedade baseada na transparência e no diálogo, dizem, o anonimato total fragiliza a confiança mútua e compromete a segurança. Além disso, a burca é vista como um símbolo de subjugação feminina, incompatível com os princípios de igualdade e emancipação que os Estados democráticos procuram afirmar.

Outros sustentam que a proibição é uma defesa legítima da laicidade do Estado. Nas ruas e instituições públicas, o cidadão deve apresentar-se não como membro de uma comunidade religiosa específica, mas como parte de uma cidadania comum. A neutralidade visual seria, nesse sentido, uma extensão da neutralidade política e espiritual do Estado.
Contudo, o reverso deste raciocínio é profundo e merece igual ponderação. Ao proibir um modo de vestir que deriva de uma convicção pessoal ou religiosa, o Estado entra na esfera íntima do indivíduo, onde a liberdade de consciência deveria ser inviolável. O corpo e a aparência são territórios da autonomia pessoal — e um governo que dita o que se pode ou não usar aproxima-se perigosamente do autoritarismo que pretende evitar.

Além disso, a proibição atinge quase exclusivamente mulheres muçulmanas, gerando o risco de reforçar a exclusão social e a islamofobia. O resultado pode ser precisamente o contrário do desejado: em vez de promover integração, empurra para a marginalidade quem já vive sob desconfiança. Obrigar uma mulher a retirar o véu pode ser tão violento como forçá-la a usá-lo. Em ambos os casos, é negada a sua capacidade de escolha.
A questão, portanto, não é apenas o que o véu simboliza, mas o que a proibição dele revela sobre nós. As democracias ocidentais definem-se pela capacidade de acolher o diferente sem que isso ponha em causa os seus valores fundamentais. A pluralidade é um teste de maturidade: uma sociedade verdadeiramente livre não teme o rosto coberto, porque confia na força dos seus próprios princípios.

É legítimo exigir que o rosto seja visível em circunstâncias específicas — fronteiras, tribunais, identificação oficial — onde o interesse público se sobrepõe à escolha individual. Mas transformar essa exigência em proibição generalizada é um passo excessivo e contraproducente. As leis devem proteger a liberdade, não substituí-la por uma moral estatal.
No fundo, o desafio das democracias não é ver todos os rostos descobertos — é aprender a reconhecer a dignidade que existe mesmo por trás do véu.
Acabada a exposição lógica, que me deixa com o amargo sabor da dúvida continuada, permito-me uma pequena curiosidade contextual. Quem lançou o grito de alerta para este caso? Em que circunstâncias o fez? É pessoa, grupo ou partido de passado exemplar na defesa de mulheres, minorias, migrantes, etc.?
Respondendo-me às questões postas distingo: Foi o Chega que lançou o grito de alarme; por acaso quando lhe era urgente ocultar o seu espetacular falhanço nas autárquicas e, a sua posição constante é contra migrantes, minorias e sobre a ideia que têm sobre o feminino basta reparar como tratam as deputadas dos grupos adversários, com a concordância cúmplices das mulheres que “enfeitam” a sua bancada.

Pronto! Se não fiquei esclarecido percebi, ao menos, que nada nesta gritaria é a sério. É só fumaça – onde é que eu ouvi isto? – para distrair papalvos.
A burca e a condição feminina merecem discussão mais aprofundada e, com toda a ajuda que possa ser dada, é assunto a resolver, sobretudo, pelas mulheres dos países onde o rosto velado impera. Deverão ser elas a ter a última palavra.
Resolver a questão fora deste quadro dá-me a impressão de ser etnocentrismo.

Carlos Alberto Correia

19.10.2025 - 20:11

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