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Barreiro – Da tecnologia ao imobiliário
Por António Sousa Pereira
Senti um grande orgulho por estar ali, num dia e na hora de jogo de Portugal, num campeonato mundial de futebol, ao sentir uma sala cheia, com mais de uma centena de pessoas, e, dar o meu contributo na apresentação do livro "O caminho-de-ferro no Barreiro - História e Memória Social", de Rosalina Carmona.
Ali, naquela sala que, precisamente, neste mês de Dezembro, no ano de 1922, foi adquirida pelos ferroviários do Barreiro e passou a designar-se “Casa dos Ferroviários”. Que bela homenagem à cultura ferroviária assinalando este centenário, com este dia de história e cultura.
Reproduzo o texto integral da minha intervenção no decorrer da apresentação do livro, hoje, dia 10 de dezembro de 2022.
O caminho-de-ferro no Barreiro - História e Memória Social
de Rosalina Carmona
Barreiro – Da tecnologia ao imobiliário
Boa tarde,
Num dia e hora de jogo de Portugal, num campeonato mundial de futebol, estar aqui, de facto, só por amor ao Barreiro, ao prazer de pensar a história, e, ao desejo de expressar a gratidão ao trabalho da historiadora Rosalina Carmona.
Dito isto, quero agradecer este amável e inesperado convite de Rosalina Carmona, para estar aqui, neste dia, ao seu lado, neste começo da segunda década do século XXI, para comentar o seu livro, que nos faz reviver a epopeia deste território, desde os tempos do século XIX, e, também nos proporciona uma viagem por dentro do século XX, até aos dias de hoje, aqui e agora, numa luta contra o tempo, na qual a Rosalina não abdica de estar e, por essa razão, não deita a toalha ao chão, pois procura tudo fazer para dar o seu contributo com o objectivo de salvaguardar e preservar um património histórico, único, assumindo esse desígnio, quer como Historiadora, quer como cidadã. É essa energia que está inscrita na sua obra: “O Caminho-de-Ferro no Barreiro – História e Memória Social”.
Costuma-se dizer que só se ama aquilo que se conhece, pois a minha amiga Rosalina, conhece, por dentro dos nervos, esta história ferroviária, esta cultura ferroviária, este legado civilizacional, que ela transporta por dentro do seu coração de forma pura e apaixonada. Sente-se isso ao ler o seu livro.
Rosalina, procura fazer-nos compreender os pormenores, desde as várias categorias profissionais, passando pelo mundo das ideias, vivendo tudo com paixão e escolhendo um lado da história, que para ela, é indissociável da luta de classes e no seu percurso de vida, a vida de uma mulher de luta e trabalho, que se fez, por si mesma, levantando-se do chão, para assumir de cabeça erguida a consciência de uma jangada de pedra. Os seus ideais e sonhos de querer construir um mundo que se faz no presente, com o legado de gerações que nos antecederam.
Como um dia escreveu Marc Bloch: “Não afirmemos que o bom historiador é alheio a paixões”, Bloch refere, que o “historiador escolhe e aparta”, porque “analisa” entre a “diversidade dos factos”.
Rosalina Carmona, escolhe, interpreta e valoriza, assumindo uma “unidade de consciência” na sua viagem pela história. É uma opção.
A nossa historiadora do Barreiro ferroviário, refere na sua obra, por exemplo, que este espaço, aqui, onde estamos, há precisamente 100 atrás, neste mês de Dezembro, no ano de 1922, ele adquiriu a designação de “Casa dos Ferroviários”, realizando-se nesses dias um sonho da família ferroviária barreirense.
E, portanto, não tenho dúvidas, que esta é uma bela forma de assinalarmos este centenário, estarmos, aqui, neste dezembro de 2022, a apresentar esta obra de Rosalina Carmona.
Na verdade, assim estamos, também, nos dias de hoje, a escrever uma página da história da cultura ferroviária do Barreiro e do país, neste século XXI.
Neste tempo que o Barreiro devia estar atento e, na realidade, não deixar que as coisas aconteçam e ficarmos apenas à margem da história, assim como quem diz – a ver os comboios passar. Como aconteceu nos anos 90 – nomeadamente a partir de 1999 – quando o vimos passar ao longe, na ponte 25 de Abril.
Esta investigação histórica de Rosalina Carmona permite-nos ter a visão da importância dos caminhos de ferro no Barreiro, não apenas para a História Local, mas também para a História de Portugal.
Foi nos anos do século XIX, que Portugal deu os primeiros passos na criação de uma rede ferroviária, assumindo a ferrovia como uma marca de uma mudança civilizacional, rasgando novos caminhos, que visavam superar a sua dimensão puramente agrícola, nesse tempo, sem dúvida, o Barreiro estava na linha da frente da modernização e da inovação do país.
Os dois primeiros troços ferroviários no país são – Lisboa até ao Carregado; e Barreiro para o sul do país, recorda Rosalina Carmona.
Desde esse tempo, o Barreiro passou a integrar o nó da centralidade ferroviária, em torno de Lisboa. E viu nas margens do Tejo, nascer um património único no país - uma Estação Ferro Fluvial, que devia ser preservada, de forma a ser parte de uma história tecnológica e cultural de Portugal, da Europa e do mundo.
Aliás, o estuário do Tejo que tem uma riqueza patrimonial, material e imaterial – de edificados e natural - devia ser declarado património mundial da humanidade.
Afinal, como dizia o poeta, o meu poeta Fernando Pessoa – “pelo Tejo vai-se para o mundo”.
E digo-vos, o lugar que o Barreiro devia estar a ocupar, de novo, neste século XXI, num tempo que a Europa, afirma querer e está a investir como prioridade neste sector, com o objetivo principal de criar um espaço ferroviário europeu único, um sistema de redes ferroviárias à escala da União Europeia, o Barreiro devia estar na primeira linha para ocupar um lugar nessa rede de futuro.
Num tempo que o Conselho Europeu aprovou, por exemplo, como estratégia para o sector ferroviário, o objetivo de duplicar na União Europeia os comboios de alta velocidade até 2030, que, o mais que pode acontecer se ficarmos em silêncio, é de novo ficarmos a ver passar comboios.
E, também, num tempo, como salienta Rosalina Carmona no seu livro que o “Plano Nacional Ferroviário está em desenvolvimento”, perante tudo isto, na realidade, ainda mais se justifica dar força, salientar e afirmar a importância histórica da cultura ferroviária do concelho do Barreiro.
Considero que esse legado histórico, essa cultura, afirmada na obra de Rosalina Carmona, é essencial para quem queira olhar estrategicamente para o futuro do Barreiro e nesse futuro dar importância ao sector ferroviário.
Afinal, um dia, inevitavelmente, vai avançar a construção da Terceira Travessia do Tejo, nem que seja só com a vertente ferroviária, e, o Barreiro ou está preparado para esse futuro, ou fica, apenas, deslumbrado na sua visão de cidade imobiliária.
Também, por este facto, esta obra de Rosalina Carmona é, neste contexto e nesta actualidade, uma pedrada no charco do silêncio que demonstra a ausência de uma estratégia, ou de pensamento sobre a importância da ferrovia e o seu papel no futuro do Barreiro.
É urgente, é necessário, é preciso equacionar num pensamento estratégico sobre a ferrovia e o Barreiro, unir esse pensar estratégico com uma visão de modernidade, e, obviamente, com um pensar cultural valorizando o nicho ferroviário que faz parte do património histórico do Barreiro. Este é um grito que se sente nesta obra de Rosalina Carmona.
Sim, esta realidade epocal, nacional e europeia, emergente, hoje, neste século XXI, é mais um contexto que nos motiva a sentirmos um grande orgulho do trabalho de investigação da história ferroviária do Barreiro patente nesta sua obra.
Quando lemos estas páginas da história ferroviária do concelho do Barreiro sentimos que esta história local, é, sempre, indissociável da história ferroviária do país. O Barreiro está na história ferroviária de Portugal.
Por tudo isto, repito, sentimos o desejo de expressar a gratidão à historiadora – também à mulher e cidadã - pelo seu trabalho de investigação, e, por, através do seu trabalho, nos proporcionar uma viagem pela memória e pelas memórias, ao mesmo tempo que nos coloca no centro do pensar e reflectir sobre os caminhos do fazer futuro.
“O que faz de um qualquer número de pérolas um colar é o fio invisível interior que as une – que as liga numa certa ordem, segundo determinada configuração”, afirmou António Sérgio, na sua reflexão sobre história, historiadores, cronistas e documentos históricos, para concluir que “o fio de ideias” que liga “uma interpretação da história”, não é mais que aquilo que ajuda a “compreendê-la”, a “uni-la inteligivelmente”, com uma “visão de unidade”, como “um único” que ajuda a “compreender o passado” e a “forjar espíritos construtores de futuro”.
Esta matriz de olhar para a história e para a investigação histórica, foi, de certa forma, a posição onde me coloquei ao longo da leitura e reflexões que desbravei na obra: “O caminho-de-ferro no Barreiro - História e Memória Social”, de Rosalina Carmona.
Porque na realidade esta é uma obra recheada de factos históricos, de pesquisa, de “muitas pérolas” com um “fio condutor”, que proporciona um legado de pistas de interpretação sobre o papel e o contributo dos caminhos de ferro para este espaço geográfico, nas margens do Tejo, frente a Lisboa, um território que tem na sua paisagem urbana inscrito um património ferroviário, um legado, que marcou o Barreiro, como comunidade, ao longo de várias gerações, dando-lhe uma dimensão especifica que integra as suas vivências humanistas, ao longo dos séculos XIX e XX, sendo essa uma marca da sua identidade.
Um património civilizacional, porque é um legado de sucessivas gerações, quer físico, quer intelectual, é por isso que esta obra de Rosalina Carmona, tem dentro de si, muita matéria para uma abordagem ao nível da sociologia, da antropologia, do planeamento do território e sócio-cultural do Barreiro na região.
O património ferroviário do Barreiro tem dentro de si uma mais valia, que pode abrir portas, ele mesmo, a um turismo cultural dos caminhos de ferro, colocando o Barreiro na Rota Europeia do mundo ferroviário.
Este é, sem dúvida, um património que carece de ser pensado, defendido, valorizado e preservado.
A obra de Rosalina Carmona permite-nos sentir que a história deste lugar Barreiro se escreve com um antes, e um depois, do seu tempo ferroviário. Que seria do Barreiro sem Miguel Pais?, interroguei um dia.
A ferrovia é o tempo histórico que abre a porta a um novo tempo da então Vila piscatória e marítima, moleira, agrícola, salineira, para um tempo de uma nova realidade económica – da cortiça à indústria química, têxtil, metalomecânica.
Uma nova realidade que transporta dentro de si uma nova dimensão social e cultural, e, na verdade é decisiva para a história industrial do país.
Uma história de desenvolvimento demográfico e humanista, que traz consigo o desenvolvimento pela instrução, com a formação escolar, ou pelas dinâmicas associativas e cooperativas.
O caminho de ferro é um fenómeno económico, social, cultural, que dá ao Barreiro uma nova identidade, levando-o para um tempo novo feito da sua diversidade – marítimo, rural, urbano e industrial.
Pelo Caminho de Ferro chegam matérias primas, chegam pessoas, chegam ideias, e são lançadas as sementes de uma terra que se faz CUF, que se faz CP, que foi a marca da “revolução industrial”, a qual é indissociável da “revolução de ideias”.
Sim, é tudo isto, que dá ao Barreiro - unidade, identidade e memória. Tudo isto faz do Barreiro uma terra de gente culta e solidária.
É preciso dizer bem alto, que uma cidade que não preserve a sua identidade, que não compreende o seu passado, que, neste caso, desista de dar ao seu património ferroviário uma importância cívica e cultural, e apostar na sua classificação, se desiste do seu passado, é uma cidade que desistiu de manter viva a sua importância e a sua dimensão histórica, na sua própria história e na história do país.
Digo-vos, seria bom e era merecido que fosse escutado este «grito de Ipiranga» inscrito nesta obra de Rosalina Carmona.
Este seu trabalho faz parte integrante do seu contributo para arrancar a ferros a Classificação do Património Ferroviário, que se arrasta desde 2009.
Será que este «grito de Ipiranga» vai ser escutado? Interrogo-me e interrogo. Os interesses imobiliários. A estratégia do PDM em vigor…as coisas que fazem esta cidade na sua realidade, aquela cidade que mais que pensar-se e fazer-se, interroga-se e gere-se no viver as circunstâncias, o imediatismo, ou as futilidades de um imaginário daqui a 500 anos.
Enfim, são tantas as interrogações e incertezas, que ao chegar ao final da leitura deste trabalho de Rosalina Carmona pensei, apenas, sim, apenas pensei, associar a minha voz às suas palavras e gritar: Por favor, dignifiquem a cultura ferroviária do Barreiro!
António Sousa Pereira
10 de Dezembro de 2022
10.12.2022 - 19:25
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