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Dos afectos do lar à sementeira da vida
Por António Sousa Pereira
Barreiro /Santiago do Cacém

Dos afectos do lar à sementeira da vida<br />
Por António Sousa Pereira<br />
Barreiro /Santiago do Cacém A obra de António Gonçalves Ventura centra-se na acção do individuo, nela, o Fernando – personagem - é o individuo enquanto construtor de história, enquanto portador de saber de experiência feito.
A obra tem sempre, em todos os seus diversos contextos, três elementos centrais – o ser humano, o tempo e natureza. Depois, em torno destes pilares centrais, entramos no pensar o lar, viver o território, sentir a comunidade e viajar pelos ciclos da vida.

Texto da apresentação na Abela – Santiago do Cacém
«O Eterno Ciclo da Vida : ao ritmo das estações do ano - Contos Didácticos» de António Gonçalves Ventura

Dos afectos do lar à sementeira da vida

Boa tarde,

Quero começar por agradecer o amável convite do meu amigo António Gonçalves Ventura, que foi uma agradável surpresa, para estar presente nesta sessão de apresentação do seu livro «O Eterno Ciclo da Vida : ao ritmo das estações do ano – Contos Didácticos». É para mim uma honra partilhar com ele e com todos vós, este momento de referência, para a sua vida e para a nossa vida. São instantes, momentos, que ficam inscritos na memória.
“Dos afectos do lar à sementeira da vida”, foi o título que escolhi para a a minha reflexão sobre o livro de António Gonçalves Ventura.

Antes de qualquer outra nota, começo por sublinhar que esta é uma obra admirável, marcada por um grande rigor, por uma profunda investigação, que exigiu muito trabalho no terreno, estudo antropológico e sociológico. Uma obra de um escritor- historiador que entende a importância da historiografia do quotidiano, para através desse minuncioso estudo entender a identidade de uma comunidade.

A certa altura da leitura, dei comigo a pensar que António Gonçalves Ventura, com este seu trabalho é um verdadeiro cirurgião do quotidiano, de forma rigorosa, sistemática, pega no bisturi e vai rasgando os tecidos da memória, dos artefcactos, do contexto social, das relações do ser humano com os ciclos da natureza. E escreve de forma simples, harmoniosa, como se tratasse de uma conversa junto à lareira. Um contador de estórias, que observa a vida da comunidade, de forma apaixonante e deslumbrante. É uma viagem no tempo, por dentro do tempo, que mergulha no pulsar do quotidiano, por dentro da memória, uma antropologia social e cultural, uma viagem pelo quotidiano, que permite sentir a ligação do ser humano à natureza, o ciclo da vida de uma comunidade que é, ele, mesmo o ciclo da natureza. Uma obra que é a vida, a vida que se espelha num texto literário, jornalístico, e historiográfico.

A obra de António Gonçalves Ventura centra-se na acção do individuo, nela, o Fernando – personagem - é o individuo enquanto construtor de história, enquanto portador de saber de experiência feito.
A obra tem sempre, em todos os seus diversos contextos, três elementos centrais – o ser humano, o tempo e natureza. Depois, em torno destes pilares centrais, entramos no pensar o lar, viver o território, sentir a comunidade e viajar pelos ciclos da vida.

O ser humano move-se, faz a sua acção, por dentro dos ciclos da natureza, é, na verdade, nesse espaço temporal que edifica o seu humanismo, inscreve as suas tradições, imagina as suas divindade, faz-se, no fazer comunidade. Sentimos que a vida do ser humano existe, no ciclo do tempo e na permanente interacção com a natureza. Este é o contexto da obra. É este contexto que cativa a leitura, nos pormenores, no rigor cientifico, no saber que se cruza com a realidade, que emerge da experiência. É apaixonante e cativante, a viagem pelo tempo, pela memória que se faz história. A micro história indissociável da macro história. Percorrer do Outono ao Outono. Entrar na história pelos afectos e ternura do Lar e findar a história da recolha ao lar, para sentir o tempo, lá fora, o vento e a chuva, o sol e o luar. O lar que protege. O lar que reconforta. A família. O Fernando e a Beatriz, nos seus silêncios e diálogos.

A obra de António Gonçalves Ventura, como ele bem refere no subtítulo é uma obra didáctica, porque proporciona muita informação, muitos dados sobre a vida social e económica, porque mergulha ma natureza e nas relações do ser humano com os ciclos da natureza. Uma estória contada ao pulsar do tempo. É uma obra escrita com a sabedoria do calor humano.
É uma obra que permite reflectir sobre a importância do estudo do quotidiano e como no quotidiano se inscreve a vida. Uma obra que permite estabelecer a ponte entre a teoria e a prática, entre a prática e a teoria. Uma obra marcada pela simplicidade de quem sabe observar, sabe estudar e quer entender, como a cultura do ser humano, se faz civilização começa na relação do ser humano com a natureza.

António Gonçalves Ventura começa por convidar-nos a descobrir o lugar, a casa, a habitação, como se fosse um realizador de cinema, que, com o olhar da máquina de filmar, entra no lar, e faz-nos sentir a magia do lar, os recantos, da lareira ao pial, passando pela máquina de costura – a Singer, tinha que ser Singer, era essa a marca da máquina da minha mãe - o forno para cozer pão, o quintal. A casa que é o lugar de protecção do frio e do calor, o recanto de silêncio, de renovação de energia após um dia de trabalho. O lugar da tranquilidade, da conversa. A casa. Os caminhos. As estradas. A família. A proximidade e a distância…

Se António Gonçalves Ventura, começa por nos proporcionar uma viagem pelo lar, onde o ser humano se encontra consigo mesmo, no diálogo e no silêncio, no pensar a natureza e o tempo. No passo seguinte o escritor- historiador motiva-nos a pensar o ser humano a dominar a natureza, tudo começa na sementeira, na charrua que substitui o arado, as mudanças técnicas que alteram as relações de produção a forma de preparar a terra. O historiador que recorda as heranças da romanização. O trigo. O pão. Outono.
Do pão passamos para o azeite. O varejar. A apanha da azeitona.

“As ovelhas aguentaram bem o Verão e o Outono”, comenta o Fernando. O personagem. Uma história que vai construindo memórias dentro do tempo, dentro do ciclo da natureza. No Verão foi a tira da cortiça, para ganhar algum dinheiro, e fazer faze às dificuldades de Outono. A limpeza as azinheiras, e as difíceis condições de trabalho. Sempre o rigor do pormenor, mas com sapiência.
Lá vem a matança do Porco. Anunciando o Inverno. Uma preciosidade literária, poética, vive-se o clima social, a partilha, o convívio. Sentem-se os sabores.
A taberna. A mercearia. Os pontos de encontro. As estradas que levam e trazem informação. O compasso do tempo é suave e lento, como lento é o ciclo da natureza.
Estamos no Natal. O peru, A celebração. O madeiro. A prenda na chaminé. O que não pode faltar. Cheira a pão cozido no forno, com todos os pormenores.

Aproxima-se a Páscoa. Plantam-se as couves, as alfaces, as ervilhas.
Lá vem a Páscoa. Escutam-se os pássaros. A natureza a florir. A Primavera que chega solarenga. E o tempo da monda espreita. É preciso limpar as ervas daninhas. Sentem-se os efeitos dos baixos salários, do trabalho sem horários. A solução é partir rumo à margem sul, Almada, Barreiro, Seixal. É a vida a rodar no tempo, por dentro do tempo. A Páscoa o tempo do borrego, do guisado e do assado no forno. E lá vem Maio, o tempo de vender os borregos. A Tosquia, a Ordenha, O queijo. A gastronomia no requinte de cheiros. A rega da horta. E aproxima-se a ceifa. A tira da cortiça. O desenvolvimento industrial da indústria da cortiça, que se estende até à margem sul.

É impressionante a beleza dos pormenores, a ligação do lugar com o mundo, com os acontecimentos que fazem o país, a ditadura, ou o contexto mundial. O escritor move-se do micro para o macro, escrevendo memórias, deixando um legado de saber.
Outubro. A Feira da Abela. O fecho do ciclo. A centralidade da comunidade e a sua importância na região. O Mercado de Abela é maior que o de Santiago. O peso da economia. A importância das redes de estradas. A distância psicológica. A distância geográfica.
Outubro dá inicio ao ciclo reprodutivo. A Feira encerra. O futuro começa, anunciando o Dia de Ano Novo, que o Fernando, personagem e a sua Beatriz, preferem que seja o Dia de Ano Bom. O divino. O humano.

A vida repete-se no recomeço do ciclo da natureza. É o regresso ao Lar, ao silêncio ao crepitar das brasas. A chuva empurrada pelo vento.
Esta, afinal é uma obra que permite sentir o ciclo da vida a pulsar por dentro do ciclo da natureza.
Começamos a leitura nos afectos do lar e partimos para sementeira da vida, depois, do cansaço e das alegrias, regressamos a lar, para um novo ciclo…é assim a história de cada um de nós, é assim a história da humanidade, ciclos de vida que abraçam a natureza, nesta nossa casa comum – a comunidade, o país, o mundo, o universo.

Abela, 4 de maio de 2024

06.05.2024 - 12:40

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