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Uma doce manhã de outubro
Por Carlos Alberto Correia
Barreiro

Uma doce manhã de outubro<br />
Por Carlos Alberto Correia<br />
Barreiro Quando, na vida urbana, apressados, nos cruzamos com alguém na rua, na maior parte das vezes, poderemos lançar-lhe um olhar distraído. Vemos um corpo, um rosto e passamos adiante. O mesmo farão os outros connosco.

No entanto, intuímos que aquele ser anónimo com o qual nos cruzamos, tem uma história, sentimentos, ambições que nesse átimo de tempo, não só nos escapam, como, com muitas probabilidades, pouco nos importariam. Só quando a ocasião nos leva a um encontro mais pessoalizado, nos é dado descobrir a profundidade que o exterior esconde.

Vem esta digressão a propósito do livro “Uma doce manhã de outubro” que aqui apresentamos e dos processos formais e estilísticos a que a autora, Ana Garrido, recorreu para nos trazer, à vida e com vida, o percurso biográfico e o ficcionado, do Escultor Soares dos Reis.

Foi escolha arriscada. Acontece muitas vezes em casos similares, perder-se o equilíbrio e derivar para qualquer um dos extremos. Ou se inclinam mais os autores para a parte biográfica, ou fazem da ficção o terreno de escrita. A dificuldade está em harmonizar os termos. Escusado será dizer que, na obra em presença, essa ponderação foi encontrada e conseguida.

Vamos pois a um breve percurso sobre o livro, o seu objeto e duas personagens que, pessoalmente, considero icónicas porque introduzem um raio de luz na vida do protagonista. Mas antes de pormenorizar esta afirmação, falemos no geral do livro.

É ele uma narrativa profundamente emotiva e reflexiva que entrelaça a vida do escultor António Soares dos Reis com as reflexões contemporâneas da narradora sobre arte, memória e sociedade. Ao explorar a trajetória do artista – os triunfos, tragédias e legado – a obra transcende o simples relato biográfico e transforma-se em meditação sobre a condição humana, o valor da arte e o papel da memória cultural.

Esta narrativa alterna entre uma reconstrução dos eventos marcantes da vida de Soares dos Reis e intervenções da narradora, que conectam o passado ao presente. Através desse diálogo entre tempos e perspetivas, o livro convida-nos a revisitar o impacto duradouro do artista e a questionar a nossa responsabilidade coletiva na preservação do seu legado.

A infância e juventude de Soares dos Reis, em Gaia, são descritas como uma fase de descobertas e desafios. Desde cedo, o jovem demonstrou talento e determinação, contrariando a vontade do pai, que lhe desejava uma carreira mais convencional e segura. A narrativa traça um panorama da sua formação na Academia Portuense de Belas Artes, onde se destacou pela habilidade técnica e criatividade, e mais tarde em Paris e Roma, onde refinou a sua arte e ganhou reconhecimento internacional.

A vida pessoal de Soares dos Reis é descrita com delicadeza, expondo tanto os momentos de alegria quanto os de dor. O casamento com Amélia, uma jovem de 16 anos, neta de Diogo Macedo, nobre, amigo e mecenas de Soares dos Reis é retratado como um refúgio breve, mas insuficiente, para aliviar os seus tormentos internos. As dificuldades financeiras, a incapacidade de ultrapassar o estatuto social da família, a perda da mãe – uma figura central de apoio emocional – e as críticas constantes sobre sua obra foram agravantes que contribuíram para o seu declínio mental.
A deterioração da saúde mental do artista é tema recorrente explorado com sensibilidade. Episódios de exaustão e isolamento marcam os seus anos, culminando no suicídio que a narradora aborda com respeito e compaixão. A mensagem por ele deixada – pedindo perdão e recusando-se a perdoar aqueles que o prejudicaram – ecoa como grito de desespero e ato de afirmação da sua longa luta pessoal.

Um dos temas centrais do livro é a contenda pela preservação da memória cultural. A antiga casa e oficina de Soares dos Reis, na Rua Luís de Camões, em Gaia, é um símbolo dessa batalha. A narradora descreve o abandono e a demolição do edifício como ato de negligência histórica, refletindo sobre como a incúria para com o património cultural revela as prioridades de cada sociedade. Esse episódio serve como metáfora da fragilidade da memória coletiva e a necessidade de ação para preservá-la.

Ana Garrido trata os temas contemporâneos para explorar o papel da arte na vida e na morte. Em capítulos como "Olhar a morte", reflete sobre a eutanásia e o suicídio, conectando a decisão de Soares dos Reis de tirar a própria vida com os debates contemporâneos sobre a autonomia individual e o direito de morrer com dignidade. Ressalta que a arte, apesar de consolar, não foi suficiente para preencher o vazio existencial do escultor, um facto que ressoa em muitas das suas reflexões.

O contraste entre a destruição do legado material de Soares dos Reis e as celebrações efémeras, como os fogos-de-artifício de São João, é outro ponto marcante. Enquanto o fogo purificador queima restos de um passado negligenciado, as festividades contemporâneas evocam a beleza e a alegria momentâneas, mas carecem da profundidade e do significado duradouro que a memória histórica pode proporcionar.

Este livro explora ainda o fardo que acompanha a genialidade. Soares dos Reis é apresentado como um homem cuja obsessão pela perfeição artística e a necessidade de reconhecimento colidiram com a realidade de um mundo muitas vezes hostil ao talento. A narrativa questiona o preço pessoal da criação artística e os limites entre a entrega à arte e aos cuidados devidos a si próprio.

Embora Soares dos Reis tenha sido celebrado internacionalmente, o reconhecimento na terra natal foi marcado por inveja, acusações de plágio e falta de apoio financeiro e emocional. Essa dualidade reflete um problema maior na cultura portuguesa – a dificuldade de valorizar o que é próprio antes que receba validação externa.

Apesar das tragédias pessoais e das dificuldades enfrentadas, a obra de Soares dos Reis permanece como um testemunho da sua genialidade. “O Desterrado” e outras criações são símbolos da capacidade de transformar dor em beleza, garantindo que a sua vida não tenha sido em vão, mesmo diante das adversidades.

“O Desterrado”, obra-prima do escultor, ocupa uma posição central na narrativa. Criada durante a estadia em Roma, a escultura é apresentada como um símbolo não apenas da sua habilidade artística, mas também da alma atormentada. A obra reflete a dor do exílio e da perda, sentimentos que ressoam tanto na vida de Soares dos Reis quanto na história de Portugal. O reconhecimento internacional que recebeu – incluindo prémios em Madrid – contrasta com as controvérsias e invejas que enfrentou em Portugal.

Feito este percurso genérico e respondendo ao desafio da autora, penso ter chegado o momento de me referir ao simbolismo encerrado no título da obra que é, simultaneamente, o título de um dos capítulos.

O capítulo "Uma doce manhã de outubro" descreve um momento de serenidade em Roma, quando António Soares dos Reis passeia pelas ruas, contemplando a cidade e as paisagens naturais. Ele recebe a visita inesperada de Francesca, que o surpreende no seu aniversário. Esse momento é marcado por gestos de carinho, ternura e intimidade, mostrando uma rara harmonia na vida do escultor, frequentemente tumultuosa.

A manhã de outubro reflete um instante de calma e beleza, em que a natureza, os afetos e o trabalho de António parecem estar em equilíbrio. É um momento fugaz em que o protagonista se sente em paz com o mundo, o que contrasta com os muitos períodos de angústia descritos na restante narrativa.
Francesca, nesse contexto, simboliza o calor humano e a simplicidade que suavizam os conflitos interiores de António.

A manhã é "doce" porque comporta uma felicidade simples, algo raro na vida do escultor, que é constantemente marcada por dificuldades financeiras, crises emocionais e rejeições artísticas.

O mês de outubro é frequentemente associado à transição e ao limiar entre duas condições — o fim do verão e a chegada do inverno. Isso pode ser interpretado como uma metáfora para a vida de Soares dos Reis, que, no período da narrativa, está num momento de mudança emocional e artística.

Outubro representa uma fase de equilíbrio temporário, como o outono que equilibra o calor do verão e a frieza do inverno. No caso de António, esse momento de serenidade é uma pausa entre as dificuldades do passado e os desafios futuros, um deles quase imediato.

o A manhã de outubro é doce, mas passageira. Assim como o outono se dissolve no inverno, os momentos de felicidade de António são efémeros. Isso reflete a ideia de que a vida é feita de instantes breves de plenitude, interrompidos pelas inevitáveis adversidades.
o
A narradora busca conectar o leitor à ideia de que, mesmo em vidas difíceis, como a de António, há momentos de beleza que merecem ser valorizados. O título ressoa tanto na vida do escultor quanto na experiência do leitor.

Assim, "Uma doce manhã de outubro" carrega múltiplos significados:
• Representa um momento de serenidade e equilíbrio na vida de Soares dos Reis.
• Simboliza a transitoriedade e a fragilidade dos instantes de felicidade.
• Convida o leitor a refletir sobre a beleza dos pequenos momentos, mesmo em meio à adversidade.
• Funciona como um contraponto à tragédia da vida do escultor, destacando que, apesar dos desafios, a existência não é desprovida de doçura.
Esta combinação de significados torna o título não apenas adequado, mas profundamente simbólico, compreendendo a essência do livro e a perspetiva reflexiva da narradora.

Mesmo correndo o risco de ultrapassar o tempo devido a esta explanação não gostaria de terminar sem uma breve alusão a Isabel, vizinha, amiga, companheira da infância e adolescência, paixão subterrânea, sempre presente, mas a que só raramente lhe é permitida leve eflorescência.

No capítulo “Encontro no Rio” Soares dos Reis, obrigado a interromper o pensionato por causa da guerra Franco-Prussiana, por puro acaso, enquanto se banha na ribeira, vê Isabel, a lavar roupa. Sentindo-se observada deixa escapar uma camisa, que Soares dos Reis prontamente irá apanhar. Na sequência envolvem-se docemente. No entanto a descrição do momento evoca deliberadamente os gestos de um escultor moldando ou tomando medidas do modelo. Há, nessa cena, elementos que sugerem um ritual de iniciação artística.

Os toques de António, descritos como suaves e precisos, não se limitam a gestos de atração física. A narrativa posiciona esses movimentos como deliberados, quase técnicos. Isso lembra o processo de um escultor que busca as proporções exatas do modelo, preparando-o para ser esculpido em mármore ou moldado em argila.
"Percorreu o corpo e o rosto com as suas mãos de artista" é uma frase que coloca Isabel não apenas como objeto de desejo, mas como musa, inspiração e matéria-prima para a arte.

O cenário natural — o rio, a luz, o movimento da água — reforça a sensação de um espaço primordial, onde o artista encontra a matéria bruta. Isabel, nesse contexto, é uma figura orgânica, moldável, que o escultor vislumbra como obra potencial deslumbrante e perfeita.

O facto de Isabel estar parcialmente despida na cena e exposta à interação com António sugere um estado de entrega sensual e de transformação. É como se, nesse momento, ela estivesse sendo observada e "moldada" por ele, não apenas fisicamente, mas também em termos de significado.

Um outro momento crucial acontece quando Isabel, muitos anos depois, já casada e com filhos, recebe a notícia do suicídio de Soares dos Reis. De cabeça perdida corre desabalada para a ribeira, deixando-se envolver pelo desgosto, pela chuva, pela lama para, sozinha, deslaçar o seu profundo desgosto e lamentos. Feita a catarse retorna do rio coberta de lama. É uma poderosa metáfora da sua transformação em escultura. Aqui, o barro e a terra que a cobrem simbolizam tanto a matéria-prima da arte quanto o luto e o peso emocional da perda.

Isabel, suja de barro, é descrita como uma "escultura viva", marcada pela dor e pela conexão com António.

A mistura de barro, lágrimas e chuva reforça a ideia de fusão entre a natureza (o elemento criador) e o humano (a dor existencial). Ela é transformada, momentaneamente, em objeto artístico – escultura de barro e dor - que expressa o luto e memória.

Nos dois momentos descritos, Isabel transcende a condição de simples personagem e torna-se símbolo da arte, da criação e da memória. No rio, ela é a matéria bruta que o escultor molda com o toque, transformando-a em ideia. No retorno, coberta de barro, ela é a própria obra inacabada, representando dor, perda e renovação. Esses momentos destacam como a autora entrelaça a narrativa da vida de Soares dos Reis com a estética da escultura, convertendo Isabel num dos mais fortes símbolos da jornada artística e emocional do escultor.

Este livro é mais do que uma biografia; é um diálogo entre o passado e o presente, entre a arte e a vida, entre a memória e o esquecimento. Ao revisitar a trajetória de Soares dos Reis, a narradora ilumina questões universais sobre o papel do artista na sociedade, os desafios da criação e a responsabilidade coletiva em preservar o património cultural.

Concluindo.

A história de Soares dos Reis é uma narrativa de contrastes: glória e sofrimento, criação e destruição, permanência e efemeridade. O legado artístico de Soares dos Reis bem expresso em obras como “O Desterrado”, transcende a sua vida e lembra-nos que, por um lado, apesar do esquecimento e da negligência, a arte tem o poder de sobreviver e inspirar.

Por outro lado, as intervenções contemporâneas da narradora desafiam a refletir sobre como, hoje, tratamos a memória cultural. A destruição da casa de Soares dos Reis e o abandono de outros legados culturais são alertas de que o desleixo pode apagar histórias valiosas e irrecuperáveis.

No todo, o livro convida-nos a reconhecer a importância da arte e da memória como pilares da nossa identidade e a assumir o compromisso de cuidar desses legados para as gerações futuras. Soares dos Reis pode ter encontrado consolo apenas na morte, mas a sua arte continua a falar, a inspirar e a viver.

Este livro é uma celebração e uma chamada à ação – para que o passado nunca seja completamente esquecido e para que o presente reflita sempre sobre as suas escolhas.

Carlos Alberto Correia






26.11.2024 - 11:07

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