personalidades
Uma memória de Manuel Sérgio
Por Jorge Morais
Barreiro

A ‘persona’ pública de Manuel Sérgio estava em formação e ele não era ainda o “pedagogo insigne” ou o “filósofo do Desporto” que mais tarde viria a ser. Era então funcionário público, dava umas aulas para arredondar o ordenado e confessadamente aspirava à respeitabilidade intelectual já conquistada pelo Professor José Esteves, o grande sociólogo do Desporto que toda a gente admirava.
Recordo-me distintamente da silhueta formal que exibia nesses tempos – de fato cinzento de fantasia um pouco fora de moda, gravata e chapéu às três pancadas, muito loquaz e gestual, cumprimentador e mesureiro mesmo para rapazes dezenas de anos mais novos do que ele, como o Carlos Bicas e eu éramos.
Que fazia Manuel Sérgio, um homem ligado ao regime então vigente, num jornal como o República? Para compreender este aparente paradoxo é necessário recorrermos à sua biografia original, quando ainda não tinha sido retocada pelos pincéis benévolos da hagiografia.
Manuel Sérgio Vieira Cunha nasceu em 20 de Abril de 1933, no seio de uma família pobre do bairro da Ajuda: seu pai era praça da Guarda Republicana; sua mãe, analfabeta. “Em nossa casa não havia um livro”, recordará mais tarde. Estas circunstâncias adversas dominaram a sua vida de menino desfavorecido, primeiro numa breve passagem infrutífera pelo seminário e depois num emprego braçal no Arsenal do Alfeite, onde chegou a fiel de armazém. Ali estava aos 22 anos, quando corajosamente decidiu dar a volta à sua vida, galgar as cadeiras liceais à custa de noites mal dormidas e ingressar, por fim, no curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, que fez com uma perna às costas como trabalhador-estudante.
Inteligente, dotado de uma perspicácia que a pobreza inicial espevitara, Manuel Sérgio conseguiu em 1968 (após três anos a dar aulas no Ensino Técnico) um tranquilo lugar de arquivista no Centro de Documentação do Fundo de Fomento do Desporto, organismo presidido pelo director-geral da Educação Física, Desportos e Saúde, Armando Rocha, sob a tutela do então ministro da Educação, José Hermano Saraiva. Este era o seu ofício quando o conhecemos. Cheguei a visitar o seu local de trabalho, onde ele se ocupava a classificar periódicos de educação física e a redigir textos para publicações do próprio Centro de Documentação, entre eles uma revista trimestral.
Numa suave modorra de burocrata do regime decorreram para ele os anos 68 e 69, em que acumulava as funções no Centro de Documentação com as aulas avulsas que dava na Escola de Educação Física de Lisboa, de onde saíam diplomados os instrutores de Ginástica (os professores, propriamente ditos, estudavam no INEF - Instituto Nacional de Educação Física, equiparado ao escalão superior do Ensino oficial).
Mas em Janeiro de 1970 José Hermano Saraiva deixa o Governo e é substituído por Veiga Simão. E para o lugar de Secretário de Estado da Juventude e Desportos, do qual dependiam o director-geral dos Desportos Armando Rocha e o documentalista Manuel Sérgio, entra Augusto de Athayde Soares de Albergaria. Foi a reviravolta.
Politicamente, Manuel Sérgio era então um situacionista moderado, seguidor do reformismo de Marcello Caetano. Tinha pelo seu chefe directo, Armando Rocha, uma verdadeira veneração, e partilhava com ele uma atitude vagamente crítica do regime. Tudo se conjugou nos “ventos de mudança” anunciados por Augusto de Athayde e Veiga Simão, os quais permitiram a Manuel Sérgio, anos mais tarde, reclamar para si uma reputação diáfana de oposicionista.
As reformas de Simão deram outro élan ao Centro de Documentação. De agente coadjutor na formação de instrutores e professores de Educação Física passou a aspirar a um estatuto normalizador do pensamento oficial na matéria. O boletim do Centro, agora praticamente todo escrito por Manuel Sérgio e pelo Professor Mário Cabral, começou a chegar às Redacções dos jornais de Lisboa – e em torno da equipa de Armando Rocha cresceu uma fama intelectual assumidamente destinada a contrariar a influência do Professor José Esteves no pensamento elaborado sobre Desporto. A própria RTP deu asas ao Centro de Documentação, que se resumia a seis estantes com revistas e alguns livros soltos, como se se tratasse de uma importante fonte de produção teórica. Todos nós, metidos no assunto, sabíamos que as únicas fontes verdadeiramente cultas sobre o tema estavam nas monografias francesas da Maspero (recordo, por exemplo, a edição colectiva “Sport, Culture et Repression”) e na obra solitária “O Desporto e as Estruturas Sociais”, publicada na Prelo em 1967 por José Esteves, então bolseiro da Fundação Gulbenkian.
Em 1971, na sua qualidade de arquivista do Centro de Documentação, Manuel Sérgio foi integrado na equipa portuguesa que assistiu em Madrid a um Congresso da Fédération Internacionale d´Éducation Physique, acompanhando nessa deslocação os Doutores António Leal de Oliveira e Celestino Marques Pereira, ambos professores do INEF. Tornou-se então redactor da revista da Fédération para temas portugueses – e, graças a isso, no ano seguinte passou a integrar o Bureau Internacional de Documentation et d´Information d´Éducation Physique et Sport, sob os auspícios da UNESCO. Manuel Sérgio começava a moldar a sua ‘persona’ pública.
Foi com estas excelentes credenciais que Manuel Sérgio se apresentou a escrever no mais vetusto jornal da oposição ao regime, o República. Se bem me lembro, foi o grande jornalista Carlos Soares quem o convidou, alertado pela insinuação crescente de Manuel Sérgio nos meios em que se discutia o Desporto de forma mais elaborada. O próprio República atravessava uma fase de remodelação e modernização que não excluía o contacto com franjas críticas do regime. Para a equipa da secção de Desporto do República, contudo, José Esteves mantinha-se como grande referência e Manuel Sérgio surgia como um reformista oriundo do marcelismo. Creio que nos servimos mutuamente: Sérgio abrindo uma brecha no jornal da Oposição, o República abrindo uma brecha na equipa de Veiga Simão.
Talvez neste período Manuel Sérgio se tivesse tornado, interiormente, um verdadeiro oposicionista ao regime que servia, admito hoje. Mas se isso aconteceu, não o confessou de viva voz. Diga-se em abono da verdade que ele próprio haveria de reconhecer mais tarde, em auto-ironia: “tão cauteloso fui que não cheguei a incomodar a polícia política”. E, de facto, quando o Carlos Bicas e eu privámos com ele, entre 1971 e 1973, Manuel Sérgio tinha sobre o assunto um descaro quase cândido e dizia com frequência: “Vocês vejam lá, que eu tenho uma família para sustentar”.
Recordando hoje o Manuel Sérgio desses tempos, Carlos Bicas refere-o como um corpo estranho mutuamente aceite por puro humanismo. E assim era. Ele vinha ao jornal entregar os seus artigos e aproveitava para cavaquear com repórteres e redactores, sobretudo às tardes, quando havia menos movimento. Insinuante e arguto, alinhava nas discussões com uma entrega a que não podíamos ficar estranhos. Às vezes vinha almoçar e acompanhava o nosso ruidoso bando, embrenhando-se nas minúcias althusserianas sem qualquer problema. É verdade que uma vez ou outra tentou, para nosso escândalo, fazer passar um elogiozinho discreto a Armando Rocha ou a Augusto de Athayde, mas de um modo geral os seus artigos (um ou dois por semana, no corpo do jornal ou no suplemento de Desporto) tentavam seguir as pisadas de análise do inimitável Professor José Esteves, embora já com um olhar próprio sobre aquilo a que então chamávamos “o fenómeno desportivo”. Mas a diferença entre ambos via-se bem nas respectivas agendas temáticas: Manuel Sérgio era atraído para a análise do Desporto de alta competição, do treino, do músculo e do movimento, dos grandes clubes e dos ídolos; José Esteves inseria o Desporto no processo sócio-político e ocupava-se da educação física como disciplina de cidadania (foi José Esteves, e nenhum outro, o grande teorizador dos Jogos Juvenis do Barreiro).
Este improvável namoro de Manuel Sérgio com a Redacção do República foi interrompido em 1973, quando Inácio Teigão, repórter alentejano de pena agilíssima, nos deixou para integrar a equipa fundadora do Expresso, levando consigo no Ford Capri a colaboração de Manuel Sérgio. Acompanhámos esse processo com expectativa – e, a convite do Teigão, alguns de nós chegámos a escrever peças para essa fase inicial do semanário da Rua Duque de Palmela. Foi o caso do Carlos Bicas, que ali publicou um artigo sobre o saudoso Bóia, o grande remador barreirense Carlos Oliveira, que pouco antes participara nas Olimpíadas de Munique.
O nosso contacto com Manuel Sérgio espaçou-se então, mas ele continuou a visitar a nossa Redacção de vez em quando, agora para se manter informado sobre o progresso da insurreição nos quartéis, que de solavanco em soluço acabou por desembocar no “Portugal e o Futuro”, no 16 de Março e no golpe final do Carmo.
*
O 25 de Abril libertou Manuel Sérgio e levou-o a seguir, finalmente, o seu caminho independente. Convidado a leccionar no INEF (uma sua ambição antiga), ensinou "Introdução à Política", "Introdução à Educação Física" e "Filosofia das Actividades Corporais". Adaptando ao Desporto a sua formação académica na área da Filosofia, aventurou-se pela teorização do Movimento, acabando por esboçar uma "Epistemologia da Motricidade Humana" na linha de Karl Popper, temperada pela análise cortante de Gilles Deleuze, pelo didactismo de Robert Mérand e pela metodologia da escola francesa da Motricidade. Foi director d’Os Belenenses, teve programas de televisão, doutorou-se e teve cátedra, andou pela política, foi deputado, jubilou-se e acabou a sua vida como mentor e inspirador de grandes desportistas. Já só à distância acompanhei esta “segunda vida” de Manuel Sérgio.
Mais do que um filósofo autor de uma obra original, Manuel Sérgio soube trazer para Portugal o pensamento filosófico sobre o Movimento e a Motricidade, adaptando-o ao Desporto de alta competição. Aos olhos de muitos alunos que pouca coisa teriam lido antes de o conhecerem, Manuel Sérgio surgia como uma autêntica revelação, levando-os a descobrir que o pontapé na bola, afinal, era mais do que um simples pontapé na bola. Muitos ficavam deslumbrados quando ele dizia coisas como esta: “a Motricidade Humana explica o absoluto do sentido e o sentido do absoluto no movimento intencional” – frases enigmáticas que os mais ilustrados leitores do Record consideravam pérolas. Que mal fazia, mesmo que não passassem de habilidade de ‘jongleur’ das palavras?
Para mim, que o conheci ainda diamante bruto em lapidação, mais importante do que o Manuel Sérgio das frases feitas para
impressionar jogadores de futebol foi o Manuel Sérgio que soube superar-se como pessoa. A sua determinação levou-o a percorrer o caminho que ele próprio abriu, a golpes de audácia e tenacidade, acabando por moldar com as suas mãos o edifício de uma ‘persona’ pública que deixa marca. Construiu-se a si mesmo. Hoje, a meio século de distância, tiro-lhe o chapéu – como ele fazia sempre que nos cumprimentava na Redacção do República, em antecipação de sabatinas sem fim, nesses dias luminosos que nos pareciam eternos.
Jorge Morais
25.02.2025 - 12:12
imprimir
PUB.
Pesquisar outras notícias no Google
A cópia, reprodução e redistribuição deste website para qualquer servidor que não seja o escolhido pelo seu propietário é expressamente proibida.
Fotografia e Textos: Jornal Rostos.
Copyright © 2002-2025 Todos os direitos reservados.