reportagem

Juan António Flores no Rotary Club do Barreiro
Nos dias de hoje há intolerância ao pensar

Juan António Flores no Rotary Club do Barreiro<br>
Nos dias de hoje há intolerância ao pensar  . Primazia da imagem sobre a palavra é um empobrecimento

. O que está a cair é a ordem e a autoridade

“Há pessoas que pelo reconhecimento são capazes de matar, de fazer coisas anti-éticas. O poder e o dinheiro são instrumentos para ser reconhecidos. Querem ter importância, seja de maneira mais sã, ou de maneira menos sã.”, disse Juan António Flores, na sessão do Rotary Clube do Barreiro.

O Rotary Club do Barreiro organizou na StarUp Barreiro, uma reunião-palestra, com o tema «Os desafios da Psicanálise à luz dos novos conflitos humanos», tendo como prelector Juan António Flores, ex- Presidente da Sociedade Chilena de Psicanálise.
O docente na Escola de Psicologia, nas Universidades do Chile e Andrés Bello, proporcionou uma lição sobre psicanálise e a forma como esta interpreta psiquismo humano, não pretendendo que, a sua posição seja uma única visão, porque, nós, “os seres humanos somos como somos”.
A sua reflexão, disse, tem por base uma visão teórica e prática, que dia a dia, hora a hora, observa no seu consultório, praticamente, pela análise do sofrimento e da dor do ser humano.

Sociedade humana que não exista mal-estar é impossível

Referiu que uma das características da psicanálise é observar o sofrimento humano, é verificar que “o sofrimento e a dor” no ser humano é estrutural.
O ser humano vive exposto a frustrações, à dor, que são as características da vida, que são as suas circunstâncias históricas, as quais, em cada momento, demonstram, que existe esse conflito – o sofrimento - que é um elemento substancial da vida humana.
“Pensar uma sociedade humana que não exista mal-estar é impossível”, salientou.
Na sua opinião, o que podemos elucidar, é procurar saber qual o mal-estar, qual o conflito, e, como podemos, o mais possível, diminuir esse conflito.

Nós nunca damos alta, damos baixa ao paciente

Juan António Flores, recordou que a psicanálise, na sua prática não utiliza o modelo médico, esse, quando existe uma pessoa doente, por exemplo, alguém que parte uma perna, decide que a pessoa fica sujeita a umas semanas de gesso, depois segue-se o exercício, e, por fim, o médico dá alta ao paciente. Dá alta quando a perna volta à sua função que tinha perdido, quando o paciente volta a caminhar. A função do modelo médico é, portanto, proporcionar que o doente recupere uma função que tinha perdido.
No modelo psicanalítico, não se trata de devolver à pessoa nenhuma função perdida, trata-se de meter a pessoa dentro do conflito, para que esta possa prosseguir, para além das situações que provocaram o seu conflito, e, também saber como enfrentá-lo. O trabalho terapêutico na psicanálise, é, em parte, um duelo, entre a procura de um sentido de saber que não há um lugar final, e, saber que não há um lugar final.
Não há um lugar de sanidade completa, não há um lugar que encerre a dor, sublinhou.
Se no modelo médico, o médico dá alta ao doente, no modelo psicanalítico, o doente dá baixa ao psicanalista. “Nós nunca damos alta, damos baixa ao paciente”, disse.

O derrube da utopia colectiva

Na sua intervenção, recordou que, no ano de 1989, viveu-se um momento fundamental da história recente da humanidade, a queda do muro de Berlim. Este foi o momento que marcou o derrube da última utopia colectiva da humanidade, foi o fim de um período que o ser humano sonhou com uma sociedade nova e com um mundo novo – totalizante e absoluto. Foi o derrube da utopia colectiva.
Referiu que Francis Fukuyama definiu esse momento como a marca do “fim da história”.
Recordou que após a queda do muro de Berlim, a europa viveu uma série de conflitos nacionais, que há muitos anos não vivia, viu o renascer de nacionalismos.

Poder e dinheiro instrumentos para ser reconhecidos

Na sua intervenção colocou a pergunta: Porque vivemos?
Respondeu : Vivemos porque somos algo para alguém, vivemos porque há algo nos reconhece como algo valioso. Vivemos com os outros. Em cada um de nós existe a luta pelo reconhecimento.
“Há pessoas que pelo reconhecimento são capazes de matar, de fazer coisas anti-éticas. O poder e o dinheiro são instrumentos para ser reconhecidos. Querem ter importância, seja de maneira mais sã, ou de maneira menos sã. Todos queremos ser algo para algo”, disse.

Quando não temos futuro a vida torna-se vazia

Juan António Flores, salientou que esse outro, esse algo, pode ser uma condição divina, que também representa um sentido para a vida, ou o sentido de perspectiva de futuro.
Todos vivemos nos tempos da pandemia, a angústia que não havia futuro. A vida converteu-se a um tempo de puro presente. Esse foi um tempo que se registou, em todo o mundo, um aumento de consultas psicológicas.
“Quando não temos futuro possível, não temos projecto, não temos sentido para a vida, então a vida torna-se vazia, obscura, só presente, não há perspectiva. Não há futuro”, salientou.
“A utopia é uma invenção de futuro, é sentir que há um para quê, um porquê”, afirmou.
Viver é a nossa condição psicológica, viver é a força que nos empurra, suportando as carências e as dificuldades, vivemos porque temos futuro, porque temos perspectiva. Há um projecto.
Quando isso não ocorre a vida transforma-se em puro presente. Quando não há um para quê, morremos, salientou.

Seres humanos perderam utopias colectivas

Na sua opinião, os seres humanos perderam o sentido de viverem as utopias colectivas.
Na sua opinião, nos dias de hoje, só há utopias privadas – a família, o consumo. São utopias pequenas.
“Quando não há utopias colectivas a sensação é de profunda desesperança.”, disse.
Num tempo que há mais saúde, mais qualidade de vida, vivemos mais tempo, o que existe, é a ideia que há menos sentido para a vida. Por essa razão, nos dias de hoje, utiliza-se a droga ou álcool para suportar a vida. Usa-se a droga ou o álcool, ou até, o uso dos fármacos, para dopar-se, para viver e enfrentar a vida.
Os tempos actuais são marcados pela perda de dimensão de perspectiva. Há ausência de fundamento, há a ausência de algo que sustente a vida colectivamente, sublinhou.

Hoje o fundamental é a intolerância ao pensar

Hoje, como nunca, retornaram os fundamentalismos, os fundamentalismos políticos, do absoluto total, e, fundamentalismos religiosos. O fundamentalismo de pessoas que matam pela restauração do califado, ou, pessoas que matam porque o outro é inimigo da pátria. Vivemos um tempo de retorno aos fundamentalismos e às ideologias nacionalistas.
Estes, são exemplos da necessidade do ser humano de ser algo – ter pátria ou ter Deus.
Considera que a sociedade actual é diferente daquela que deu significado ao racionalismo, ao iluminismo. “Hoje, o que temos como fundamental é a intolerância ao pensar, só há necessidade de certezas totais e absolutas.”, disse.
Na sua opinião, estamos a entrar na emergência de uma nova ordem mundial, no que se pode referir como um ordenamento bio- político, disse, citando Michel Foucault.
“Os nossos corpos estão submetidos a uma ordem nova, onde os fármacos são exemplos de normalização social, através da bilogia”, sublinhou.
Para Juan António Flores, vivemos uma cultura de horror ao sofrimento. Sofrer, Chorar, não. É um mal. Quando, na realidade, o sofrimento faz parte de um processo de reparação. Quando ocultamos o sofrimento com simples fármacos, isto é a expressão de uma noção cultural, é uma nova ordem para manter os vínculos. “Sofremos, porque não queremos sofrer”, disse.

Os meios socias determinam não só o que escrevemos como o que pensamos.

Na sua reflexão, abordou a temática dos média, cujo papel, todos nós, ingenuamente achamos positivo, e, não damos conta que eles determinam o que escrevemos e o que somos. Os meios sociais que utilizamos para comunicar, determinam as nossas mensagens. Recordou a diferença que existe, entre os tempos que escrevíamos cartas e o tempo que começámos a escrever e-mails. Escrevemos de forma diferente de acordo com o meio que utilizamos.
Quando escrevemos no WhatsApp a escrita é diferente do Twitter. Os meios sociais, as redes sociais, determinam a mensagem.
“Hoje, dizemos, falei pelo WhatsApp, quando não falámos, escrevemos. Os meios sociais determinam não só o que escrevemos como o que pensamos. O algoritmo lê o que escrevemos, gerando vínculos com as coisas que nós gostamos de ver, ou com pessoas que têm os mesmos interesses.”, salientou Juan António Flores.
A consequência desta situação é a polarização, que é sinónimo de uma ideologia que aposta em não confrontar ideias, que gera a impossibilidade de dialogar.
Estas situações, vão reforçando a polarização política, que já sentimos na Europa ou na América. Este é um mundo conectado.
Estamos num mundo que, quem diz o que pensa, é perigoso. Surgem as teorias conspirativas. Aquele que pensa distinto e diferente - é perigoso.

Dialogar, saber esperar e saber tolerar

Juan António Flores defendeu que, perante a realidade que marca o mundo nos dias de hoje, temos que reforçar a nossa identidade, temos que dialogar mais com o outro, temos que falar com as pessoas que se movem no nosso círculo.
“Se dialogarmos menos, se discutirmos menos, tendemos a criar conflitos e inimigos.”, afirmou.
Também, disse, na actualidade, existe uma característica que é a dificuldade de esperar, não sabemos esperar.
Uma pessoa perguntava: quanto tempo demora fazer uma sessão de psicanálise? Não se quer esperar. O problema é que a complexidade humana é lenta.>
A psicanálise procura resolver os nossos conflitos, ajuda-nos, para que possamos viver melhor.
A vida não é sofrer por sofrer. A vida é viver melhor, mais feliz. Para isso, a psicanálise, ajuda-nos a saber como devemos enfrentar os labirintos nos quais existimos. É preciso saber esperar. É preciso saber tolerar a frustração. É preciso compreender que para se ter algo, é preciso trabalhar.
Como vivemos numa sociedade que fundamentalmente vive o princípio do prazer, não sabemos esperar ou tolerar a frustração do que não se vai conseguir, o que queremos é o agora, é o já, não compreendemos que é preciso construir.
Compre agora, já, porque amanhã não há, esta é uma característica humana. A dificuldade de não saber esperar leva a que utilizemos os fármacos para substituir, no corpo, a nossa incapacidade de espera.

Primazia da imagem sobre a palavra é um empobrecimento

Na fase final da sua palestra, Juan António Flores, recordou que estamos a viver num mundo onde o que existe é a primazia da imagem sobre a palavra.
A palavra caiu. Antigamente, bastava a palavra para celebrar um contrato entre duas pessoas. Hoje, um contrato tem dezenas de páginas e cláusulas até ao mínimo detalhe.
A palavra é cada vez menos importante. Para os políticos, é cada vez menos importante o discurso ou as ideias. O importante são as imagens.
Vota-se mais pelas pessoas do que pelas ideias, a importância das ideias caiu, não há ideias, porque há primazia da imagem. O instagram e o tik-tok são eixos centrais na disputa diplomática entre a China e os Estados Unidos, porque são os principais produtores de imagem.
A primazia da imagem sobre a palavra é um empobrecimento absoluto.
Recordou o texto bíblico onde se refere que antes era o caos, depois foi o verbo que trouxe a ordem. O verbo é a palavra.
A palavra cria luz, a palavra faz que algo exista, porque nada existe sem palavras. É impossível.
É a palavra que torna possível que algo tenha existência. Se não colocamos as coisas em palavras, só sentimos sensações corporais, angústia e ansiedade. A palavra é a identificação do que é possível dizer, é por isso que o pensar marca a diferença entre nós e objecto, salientou.

Existe critica a toda a noção de ordem e de autoridade

Juan António Flores, finalizou a sua palestra, referindo que vivemos num mundo marcado pela violência, um mundo onde há um corte, onde há critica à autoridade, há critica à lei.
Esquecemos que a lei actua proibindo o desejo, proibindo o impulso. Quando se ataca a lei, ataca-se a autoridade e a ordem.
É a norma e a lei, que permitem que exista uma cultura de segurança, que permite definir como viver e como habitar.
As situações que provocam a critica contra a ordem e contra a autoridade, o mundo fica exposto a toda a critica. Há uma crise, porque existe a critica a toda a noção de ordem e de autoridade, são criticadas todas as referências. Nasce uma sensação de profundo temor, de incerteza, de insegurança, surgem momentos de conflito. Há um temor profundo pela existência. Neste contexto, desenvolve-se a apetência para que exista uma resposta que reponha a paz. Aponta-se a necessidade de uma resposta autoritária. E, temos cada vez mais respostas autoritárias. É uma ameaça. A tentação autoritária deseja a ordem e paz no mundo.
Recordou que, quando do ataque à Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, 75% da população estava disposta a sacrificar liberdades individuais por segurança. Perante a ameaça estamos dispostos a perder toda a liberdade, como tal, desde que haja segurança. Hoje, são muitos os países do mundo que apostam em respostas autoritárias, referiu.

Como trabalhar o ser humano neste mundo emocional?

Juan António Flores, a encerrar a sua intervenção, colocou perguntas sobre o papel da psicanálise neste mundo de conflitos e sofrimentos: Como trabalhar o ser humano neste mundo emocional? Não temos receita!, disse. Que fazer? Depende! Depende do paciente específico, que tem uma história especifica, e, é um ser humano singular.
Foi uma lição de psicanálise. Foi uma profunda reflexão sobre o tempo que vivemos. Um mundo que gere emoções. Um mundo que valoriza a imagem, mais que a palavra. Um mundo que perdeu as utopias e com ela as ideias e o valor das ideias.

António Sousa Pereira
TE – 180
Equiparado a Jornalista

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01.02.2025 - 19:08

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