reportagem
PROJÉCTOR - Companhia de Teatro do Barreiro
NEVA, ou onde a vida se espelha no teatro?

E valeu a pena. Valeu mesmo a pena. Porque esta peça NEVA, abre caminho para uma excelente reflexão sobre os tempos que vivemos, estes marcados pela decadência e pela mudança na história da humanidade. Estes tempos, que permitem pensar que a vida é teatro e o teatro é a expressão da vida.
Sempre que vejo uma peça de teatro, para além do sentido dramático, das interpretações, da encenação e do texto da peça, penso o contexto da acção teatral, por dentro do texto, que lhe dá a estrutura cultural, depois sinto a expressão do seu conteúdo pela encenação e pelas interpretações. É isso, escrevo muitas vezes, é a peça, a nascer, crescer e morrer, no seu tempo e espaço. É tudo isso que me apaixona no teatro, quando ele dá centelhas que ajudam a pensar o tempo que vivo, e, assim, sentir que o teatro não é indiferente à realidade, pelo contrário registo que o teatro é sempre indissociável da realidade, da memória, do presente, e, muitas vezes, é pioneiro a anunciar futuro. O conteúdo desta peça é, sem dúvida, uma reflexão sobre uma época onde o teatro estava grávido de futuro.
Uma primeira sensação que senti nesta peça, foi nela encontrar uma profunda reflexão sobre o teatro e o actor. Uma peça que faz recordar os textos de Stanislavski sobre o trabalho do actor no palco, sobre o actor a pensar sobre si mesmo, o actor a olhar para o seu interior, o actor a descobrir-se na personagem. O actor e a sua disciplina para os ensaios. A conflitualidade entre o actor e as palavras do autor da peça. O debitar palavras. O sentir as palavras. “Vou-me enganar, vou-me esquecer de tudo”. A representação autêntica. A representação vazia. O texto da peça proporciona esse encontro com os conceitos teatrais expressos por Stanislavski, na sua obra “A preparação do actor”, e, sem dúvida, esta, é uma visão cultural que percorre o texto, que, sublinho, na peça NEVA é um elemento estruturante e o grande pilar do seu conteúdo dramático.
Neste contexto considero que a peça tem uma encenação, marcada pela simplicidade, que pretende dar espaço aos actores, exigindo que os actores se afirmem como o foco central de expressão cénica em cada momento. Isso, naturalmente, exige dos actores a plena vivência dos personagens e a plena interiorização do texto. Uma encenação que tem a força do realismo que procura dar espaço, total, para que as palavras respirem, rasguem a parede entre o palco e o público, para que este sinta e pense. O não à indiferença.
E, para que as palavras respirem, saltem para a plateia, aqui o contributo dos actores é a pedra angular. De uma forma global posso salientar que as interpretações dos três protagonistas são felizes, agarraram o texto, vivem o texto, cada qual dando-lhe a expressão que nasce do seu coração. É um texto difícil, que exige muita energia e a vivência plena dos personagens e das relações entre os personagens. Personagens. Actores.
Todos estiveram bem e, sem dúvida, merecem um forte aplauso, mas, quero fazer uma referência à energia, à serenidade, à forma cativante que Anabela Pereira, assume a vivência e a expressão do seu papel. Ela com beleza dá vida à sua personagem e estabelece com flexibilidade quer os diálogos, quer os monólogos com perfeição. Foi excelente. Foram excelentes.
Portanto quer a encenação, quer as interpretações são positivas e merecem que o público aplauda com fervor. Eu aplaudi.
Uma peça que nos permite mergulhar por dentro dos valores do teatro, das relações íntimas, de busca, de aprofundamento das conflitualidades humanas que possam existir entre o actor com a sua interioridade e com a sua personagem.
Uma peça onde também no texto, sentimos emergir a conflitualidade que existe, entre a peça e a vida real. A ficção no palco e o seu (re)encontro com a vida real no exterior, na cidade, nos valores epocais.
O texto coloca aos criadores da arte dramática o desafio de colocar o teatro no centro da vida e, ele mesmo, ser um agente de mudança, de intervenção, de proposta para pensar o tempo que vivemos.
E, nesta reflexão, ocorreu-me ao pensamento Mario Vargas Losa, na sua obra “A civilização espectáculo”. Uma sociedade onde a cultura é um jogo de aparências, snobismo, produtos fabricados, indústria. O jornalismo espectáculo. A política espectáculo. Um cultura que deixa as suas marcas crescer entre o vazio e a angústia. Esses são sempre, os tais tempos de mudança, de revoluções, de crises, de guerras, de domínio do outro, de submissão de compra e vendas, porque tudo tem um preço. Um tempo que gera o culto da indiferença, que gera o culto individualista do sucesso, um tempo que faz da cultura e da vida, mero consumo e entretenimento. Esta peça permite pensar tudo isso, num contexto epocal dos fins do século XIX e princípios do século XX. O legado das utopias, em decadência, substituídos, nos dias de hoje, pela “civilização espectáculo” .
Onde o teatro é a vida? Ou onde a vida se espelha no teatro? Onde o teatro é resiliência?
Afinal, um tempo, onde o teatro é uma voz de esperança! Uma peça para ver, sentir e pensar.
António Sousa Pereira
TE – 180
Equiparado a Jornalista
Ficha Técnica
NEVA de Guillermo Calderon
48ª Produção de PROJÉCTOR - Companhia de Teatro do Barreiro
Encenação – Abílio Apolinário
Interpretação
– Anabela Pereira ( Olga Knipper)
- Ebenezer Nangura (Aleko)
- Mariana Bárbaro (Masha)
Assistência Geral
- Luciano Barata e Maria João Quaresma
Guarda Roupa e Adereços
- Ana Macedo e Inês Nunes
Montagem Cénica
- Abílio Apolinário, Ana Macedo, e Luciano Barata
Fotografia e Vídeo - Filipe Macedo
Imagem Gráfica - Diogo Lencastre
. Em cena nos dias 10, 14, 24 e 31 de Maio, às 21.30 horas
Auditório do Teatro Projéctor
Rua Professor Joaquim Vicente França, nº 103
Barreiro
27.04.2025 - 15:09
imprimir
PUB.
Pesquisar outras notícias no Google
A cópia, reprodução e redistribuição deste website para qualquer servidor que não seja o escolhido pelo seu propietário é expressamente proibida.
Fotografia e Textos: Jornal Rostos.
Copyright © 2002-2025 Todos os direitos reservados.